Virão tempos em que o ensinamento salutar não será aceite,
mas as pessoas acumularão mestres que lhes encham os ouvidos,
de acordo com os próprios desejos.
2 Tim 4, 3
Nas últimas décadas, e sobretudo no ocidente, têm-se observado grandes mudanças no modo de pensar e viver a sexualidade. Tornaram-se mais frequentes e socialmente aceites fenómenos outrora reprovados como as uniões livres, a contracepção ou a prática homossexual. Isto entra em contraste com a doutrina e moral da Igreja, e as tensões fazem-se sentir também no meio católico. Os princípios morais de sempre são postos em causa até por alguns membros da hierarquia, e o povo de Deus sente-se dividido e confuso com as vozes dissonantes dos pastores que o deveriam orientar[1]. Deve a Igreja adaptar-se à cultura dominante? Ou é a cultura que deve ser transformada pela verdade do Evangelho? Desejo com este artigo lançar alguma luz sobre a questão moral e ajudar a desfazer um pouco da confusão.
Natureza, bem e mal
Falar de moralidade é falar da bondade ou maldade dos actos humanos. Caluniar é mau e ajudar uma família necessitada é bom. Porquê?
Primeiro devemos esclarecer o que é a natureza humana, conceito fundamental que é usado frequentemente de forma ambígua. Em filosofia, a natureza de cada ser -de um limoeiro, de um cão ou de um homem – é aquilo que o faz ser o que é e não outra coisa. Sou homem porque possuo a natureza humana, constituída pela unidade de corpo e alma.
Da natureza de cada ser procede o modo de agir. A natureza canina, por exemplo, faz que o cão actue de uma forma específica: dorme, come, corre, gosta de companhia, foge ou enfrenta o perigo, procura procriar. Cada acto tem uma finalidade, que no caso dos animais, é procurada instintivamente. Como vários afluentes concorrem para o rio principal, as várias finalidades concorrem para uma única a que chamamos o “bem do cão”, que consiste na perfeição segundo a natureza canina. Deste modo, um acto do cão é bom se contribui para a sua perfeição, por exemplo comer uma tigela de ração, ou mau se a contraria, como passear na auto-estrada.
De modo semelhante ao cão, também o ser humano procura o bem, agindo de acordo com a sua natureza. Ao contrário do resto dos animais, o homem é racional, isto é, dotado de inteligência e vontade. Este facto tem várias implicações. A primeira é que a perfeição da natureza humana é de ordem moral[2]. Uma pessoa moralmente boa, pode ter poucas capacidades e uma saúde péssima, mas é na mesma uma óptima pessoa; pelo contrário, uma pessoa que tivesse uma saúde e qualidades excelentes, mas fosse moralmente má, seria uma má pessoa. A segunda implicação é que o homem é dotado de livre arbítrio. Não age instintivamente como os animais mas, porque conhece o bem moral a que é chamado e o valor de cada um dos seus actos, escolhe-os livremente. Por este mesmo motivo é responsável pelos seus actos. Ninguém pensaria em acusar um tigre de homicídio por ter morto um homem. Uma pessoa sim.
Um acto humano é bom ou mau conforme concorda ou contraria a natureza humana, contribuindo ou prejudicando o aperfeiçoamento moral. Assim, cumprir com a palavra dada é um acto bom porque é próprio da dignidade da natureza humana ser leal. Mentir é um acto imoral, contrário à dignidade da pessoa, que requer a sinceridade. A repetição dos actos humanos gera os hábitos e estes definem a qualidade moral de uma pessoa. Por isso, podemos dizer que cada um é responsável pela própria qualidade moral.
A natureza humana – moral – é portanto o fundamento e critério próximo da moralidade dos actos humanos. Porque o homem é imagem e semelhança de Deus, a sua natureza espelha de algum modo a realidade divina, sendo o próprio Deus fundamento e critério último da moralidade.
Natureza e liberdade
Tendência do pensamento contemporâneo é o uso de um conceito simplista de natureza humana, reduzindo-a ao dado biológico. Excluída a racionalidade, a natureza deixa de ser instância normativa moral e a liberdade individual deixa de ter restrições. A liberdade passa a ser encarada como absoluta e ao serviço de qualquer realização subjectiva.
O reducionismo biológico da natureza humana não faz justiça à realidade. A natureza do homem é biológica e espiritual. Agir livremente, reconhecendo e escolhendo o bem segundo a própria natureza, é natural para o homem. As regras do bem e do mal são simultaneamente racionais e naturais ao homem. Opor liberdade e natureza é inventar uma divisão na unidade da natureza humana.
Ao serviço da verdade, a Revelação Cristã ilumina o sentido autêntico da liberdade. Somos livres para nos realizarmos plenamente segundo a natureza com que Deus nos criou. Não se trata de uma liberdade incondicional, que serve para qualquer tipo de realização subjectiva. Concretamente, tem como finalidade a livre adesão ao bem, que não depende da opinião do sujeito nem da cultura, mas da essência do ser humano como Deus o criou.
Conhecer o bem e o mal
Quando era pequeno os meus pais ensinaram-me que era errado mentir. Hoje, continuo a pensá-lo. Mas penso-o porque os meus pais me ensinaram ou porque é mesmo errado mentir?
Ao dizermos que o ser humano é racional, estamos a afirmar que possui as faculdades de inteligência e vontade. Pela inteligência o homem compreende e relaciona-se com o mundo à sua volta e dentro se si, captando a inteligibilidade intrínseca da realidade. O cientista é capaz de entender as “leis” que regem uma reacção química e prever o seu resultado porque é dotado de inteligência e porque a realidade é inteligível. O simples cidadão sabe que é injusta a calúnia, porque tal como a realidade material, também a realidade moral é inteligível.
Qualquer pessoa possui por natureza a capacidade do conhecimento moral, a que se chama lei moral natural. Ser natural não implica que esta lei seja, como as da biologia por exemplo, empiricamente sustentada. Recordemos que a racionalidade é natural para o homem. Conhecemo-la sem referência à realidade material, no próprio exercício da inteligência prática, sempre que julgamos ou decidimos. Quando faço um juízo ou uma escolha, sei de forma espontânea aquilo que posso ou devo fazer e o que devo evitar. Como as situações concretas de vida apresentam graus diferentes de complexidade, a moralidade de determinado acto pode não ser imediatamente evidente. Nestes casos é preciso o raciocínio para identificar as verdades morais fundamentais implicadas. Estas, que conhecemos de modo imediato e intuitivo, chamamos primeiros princípios morais.
Algo análogo acontece na matemática. Uma vez que aprendemos a somar e subtrair, passamos a conhecer estas regras imediata e intuitivamente. Não se podem provar pois todas as operações matemáticas as pressupõem. Num problema matemático mais complexo, é preciso ir raciocinando até identificar estes princípios e assim chegar ao resultado.
É importante sublinhar que a formulação conceptual dos princípios só se dá posteriormente, depois da reflexão sobre o agir moral. Por exemplo, um canal de televisão caluniou uma pessoa minha conhecida, acusando-a de algo que eu sei que não fez. Espontaneamente percebo que é injusto. Só num segundo momento faço a abstracção “caluniar é errado”.
A capacidade de conhecer o bem e o mal é natural ao homem, mas à semelhança da capacidade de falar, tem de ser desenvolvida. O meio em que uma criança crescer, a qualidade da sua educação, tal como o seu próprio empenho, influirão na capacidade da pessoa falar português correctamente, assim como de julgar correctamente o bem e o mal. O ambiente cultural em que vivemos – com os seus valores ou anti-valores – influi imensamente na capacidade de julgarmos correctamente.
Verdade moral e relativismo
Os princípios morais não dependem do voto da maioria.
O que é errado é errado, ainda que toda a gente esteja errada.
O que é certo é certo, ainda que ninguém esteja certo.
Fulton Sheen
Comecemos esta parte com um exemplo. O João aponta a pistola à menina da caixa na mercearia e obriga-a a dar-lhe o dinheiro. Para ele trata-se de fazer justiça. O Pedro, que está no balcão da charcutaria, testemunha a cena e condena-a. Para ele trata-se de uma injustiça. A Telma, na fila para pagar, apesar de pessoalmente não concordar com o que se passa, não ousa julgar, o que ela pensa é “apenas a sua opinião” que como aprendeu na escola, jamais se pode impor aos outros.
Abstraindo-nos das perspectivas de cada pessoa, o acto é objectivamente um assalto. Assaltar é objectivamente errado, porque é contrário à dignidade da natureza humana apoderar-se do alheio sem o seu presumido consentimento, e ainda por cima com violência. Sendo esta a realidade moral, podemos afirmar o seguinte: o juízo do João está errado, porque contrário à realidade; o do Pedro está certo, porque corresponde à realidade. O acto humano tem a qualidade moral que tem, independentemente de quem o realiza ou julga. O juízo que dele se faz é que pode ser certo ou errado.
A posição da Telma é dita relativista. Reduz o juízo moral a mera opinião ou gosto pessoal. Existem várias formas de relativismo. Em todas elas o elemento comum é a negação da existência de critérios objectivos de bem e de mal. Consoante a modalidade, os juízos morais que fazemos consideram-se relativos à opinião pessoal, à época histórica, à cultura etc.
A versão individualista do relativismo – “eu decido o que é certo e errado para mim” – rejeita qualquer autoridade ou ordem superior ao sujeito. É a descrição filosófica do pecado original. Uma versão mais comum entre os pensadores da actualidade -até em ambientes eclesiais – é o relativismo cultural. Segundo esta visão, a moral depende do contexto histórico, social, cultural e eclesial. Como a cultura está constantemente em evolução, os princípios morais formulados em contextos passados não se podem aplicar no presente. Torna-se necessária a constante releitura do contexto para reformulação dos princípios.
Como em todas as ideias falsas, o relativismo cultural contém uma parte de verdade que o torna verosímil. De facto, a percepção dos valores morais é condicionada pela cultura, educação e outros factores contingentes. Um primeiro olhar para as diferentes épocas da história ou diferentes culturas, parece mostrar que os valores morais são mutáveis. Mas será mesmo assim? Vejamos três breves exemplos diferentes de “mudança moral”.
Primeiro exemplo: a escravatura. As pessoas não passaram a ter a mesma dignidade a partir da abolição. Isso já era a realidade objectiva desde que existe a espécie humana. Com a abolição deu-se um ganho em sensibilidade em relação a um valor moral imutável.
Segundo exemplo: o aborto. Pode dar-se o processo inverso, de perda de sensibilidade, como no caso do aborto, que até há cem anos era considerado imoral, mas, hoje, é socialmente aceite e legal em muitos países. O ser humano não-nascido não deixou de ter a mesma dignidade que todas as outras pessoas. Por isso, o princípio moral “a vida humana é inviolável” não perdeu a validade universal. O que aconteceu foi que o egoísmo e a procura do bem-estar a todo o custo se sobrepuseram aos direitos daqueles que não se podem defender. Ofuscaram-se as consciências.
Terceiro exemplo: a piedade filial. Pode ainda manter-se a sensibilidade a determinado valor moral, mas ser expresso de modo diferente. O respeito devido aos pais obrigava os filhos a não os tratar na segunda pessoa do singular, a beijar-lhes a mão, etc. Hoje, muitos usos deste tipo perderam-se, mas é possível, ainda assim, manifestar de outros modos a veneração e piedade devidas àqueles que nos deram a vida.
Os valores morais são perenes, não dependem da cultura, como não dependem do dia da semana ou da hora do dia. Conhecer o bem e o mal, que transcendem a história, permite-nos julgar as culturas.
Obscurecimento da consciência
Até aqui temos considerado a natureza humana de forma teórica, ignorando a situação histórica real do ser humano, ferido pelo pecado. “O maior pecado de hoje é que os homens perderam o sentido do pecado”, afirmou o Papa Francisco numa homilia em Janeiro de 2014.
O pecado original deixou marcas fortíssimas no ser humano, que foram agravadas pelos seus pecados pessoais. Esta situação lamentável é universal. O homem, se por um lado está fundamentalmente destinado ao bem segundo a dignidade inquestionável da sua natureza, sofre graves desordens como consequência do pecado. Ignorar os efeitos do pecado no conhecimento moral e na vida moral é tão grave como ignorar a surdez dos alunos na aprendizagem da música.
Vejamos resumidamente esta situação: o pecado afectou a inteligência, a vontade e a afectividade do homem. A inteligência tornou-se opaca e lenta, sobretudo a nível moral. Temos uma particular dificuldade em reconhecer o bem e o mal e enganamo-nos com facilidade. Quanto à vontade tornou-se mais fraca, de tal modo que nos custa fazer o bem. Por fim, a afectividade (sentimentos, desejos) ficou desregulada.
Os afectos do homem são a expressão das suas tendências naturais e são originariamente bons, porque Deus faz tudo bem. Os nossos desejos estavam inicialmente orientados para o bem, conduzindo a comportamentos apropriados. Após o pecado ficaram distorcidos, de modo que desejamos o que nos faz mal.
Uma dimensão onde estes efeitos se manifestam com maior veemência é a sexual. Antes do pecado, o desejo e o entendimento eram sempre de acordo com a natureza racional do homem. O homem desejava a mulher e vice-versa. A dimensão sexual era harmoniosamente integrada numa autêntica relação pessoal de amor e entrega recíproca e incondicional, para toda a vida e aberta à procriação. Esta relação é o matrimónio.
O pecado fez com que a afectividade se rebelasse contra a ordem moral, tornando-se serva do egoísmo, e que, por arrasto, levasse consigo a inteligência e a vontade, já por si feridas. Por isso, o homem encontra no seu íntimo desejos contrários àquilo que sabe ser correcto: deseja relações sexuais sem estar casado, deseja a mulher que não é sua, deseja pessoas do mesmo sexo etc. Por vezes, o desejo desordenado apresenta-se de alguma forma como “natural”. Pensemos no caso da homossexualidade. Há quem sinta sinceramente atracção sexual por pessoas do mesmo sexo. A revelação do pecado original ajuda-nos a compreender esta situação: sabendo que nem tudo o que sentimos e desejamos “naturalmente” é bom, poderemos discernir e viver melhor, se quisermos, contrariando ou canalizando os nossos sentimentos e desejos segundo a verdade[3].
A capacidade radical para reconhecer os valores morais existe em potência em todas as pessoas, como foi dito mais acima. Para ser exercida, é necessária a formação no bem e o empenho pessoal. Porém, não é suficiente: a Revelação Cristã ensina que o homem deixado às suas próprias forças não é capaz de derrotar definitivamente o seu maior inimigo, o pecado. Precisa da graça de Cristo.
A misericórdia de Deus e a Igreja
Deus infinitamente bom compadece-Se da humanidade. Envia-nos o Seu Filho que nos revela a verdade e nos concede a Sua graça, que perdoa, cura, esclarece, fortalece. Jesus Cristo faz chegar a sua graça a todas as pessoas através da Igreja, por Ele mesmo fundada[4].
Para tal, o Senhor confiou à Igreja, nas pessoas dos Apóstolos, a plenitude da Revelação: o dom que Deus faz de Si mesmo à humanidade e que inclui as verdades acerca de Deus e do homem em que este deve acreditar para se salvar; o modo de viver que Deus espera do Seu povo e os meios através dos quais se comunica a salvação (liturgia, sacramentos, sacramentais etc.).
A Revelação é transmitida ao longo dos séculos pela vida própria da Igreja – Sagrada Tradição – e pela Sagrada Escritura. Tradição e Escritura formam uma unidade, complementando-se e esclarecendo-se mutuamente. De modo a garantir a interpretação verdadeira da Revelação em todos os tempos, Nosso Senhor constituiu o Magistério da Igreja, composto pelo colégio episcopal unido ao Santo Padre. Através do Magistério, Deus explica-nos sem erro o conteúdo revelado na Tradição e na Escritura.
A Igreja tem a obrigação gravíssima, pois está em jogo a salvação dos homens, de anunciar a verdade plena que devemos crer e o modo como devemos viver. Para esse efeito, a assistência divina garante a infalibilidade dos pronunciamentos oficiais do Magistério na proclamação da Fé e da Moral[5]. Os pastores da Igreja devem também procurar com solicitude conhecer a situação das pessoas em cada tempo e lugar, de modo a transmitir-lhes a verdade com a maior eficácia. Um exemplo estruturado e claro que recolhe o conjunto dos ensinamentos contidos na Revelação é o Catecismo da Igreja Católica, visto por muitos como o melhor fruto do Concílio Vaticano II.
Quando a Igreja se pronuncia sobre questões morais, deseja ajudar as consciências dos fiéis para que estes saibam com clareza o que Deus espera deles e possam agir livremente nesse sentido. Nem sempre – ou quase nunca – aquilo que a Igreja defende, no campo da moral sexual, é bem recebido pela mentalidade do tempo. “Em tempos de engano universal, afirmou George Orwell, proclamar a verdade é um acto revolucionário”. Por isso, o ensinamento católico encontra tão grandes adversários.
Porém, a Igreja como mãe não pode deixar de alertar os seus filhos. E alerta-nos precisamente porque nos ama, convidando-nos todos à conversão. Essa é a sua missão. Como escreveu G.K. Chesterton, “não queremos uma Igreja que se mova com o mundo, mas uma Igreja que mova o mundo”[6].
Julho de 2023
[1] Veja-se, por exemplo, o Caminho Sinodal alemão em que vários prelados tomam posições contrárias à doutrina católica como a aprovação e bênção de uniões homossexuais, a aceitação da ideologia LGBT etc.
[2] Quando se fala de actos humanos, racional e moral são sinónimos. A moralidade é a racionalidade aplicada aos actos humanos.
[3] Um desejo imoral por si só não constitui pecado, mas apenas se o homem consente nele. Aliás, diariamente, neste ou noutros âmbitos, sofremos a tensão causada por desejos irracionais e somos convidados a lutar para viver segundo a verdade e o bem.
[4] O Concílio Vaticano II ensina-nos que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica comoinstrumento instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo para fazer chegar a salvação aos homens.
[5] Magistério é o órgão de ensino oficial e entende-se em sentido forte: colégio episcopal unido ao Papa. O ensino de um bispo isolado ou até vários bispos juntos não é Magistério oficial da Igreja, ao qual Jesus garante infalibilidade em matéria de Fé e Moral.
[6] “We do not really want a religion that is right where we are right. What we want is a religion that is right where we are wrong. We do not want, as the newspapers say, a church that will move with the world. We want a church that will move the world.” ― G. K. Chesterton, Charles Dickens: A Critical Study.