O filósofo francês Auguste Comte (1798–1857) dizia que a Humanidade passava por três etapas: a teológica, a metafísica e a positiva. Era uma daquelas classificações definitivas, que arrumavam todo o pensamento ocidental de uma penada. Claro que a sua filosofia era a etapa final da humanidade: o positivismo comtiano seria, finalmente, a vitória da razão contra a especulação metafísica e o irracionalismo religioso.
Hoje sorrimos. Mas as coisas foram sérias: o positivismo tornou-se numa corrente retrógrada e anticientífica.
Onde o positivismo teve a sua máxima influência – surpresa: no Brasil! – tornou-se uma religião. Construíram-se templos positivistas – em Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro – onde eram dadas “missas positivistas”. A dedicação dos seus adeptos foi tão grande que foram esses brasileiros que construíram em 1903 a Capela da Humanidade, na rue Payenne 5, em Paris, no prédio onde viveu Clotilde de Vaux, a musa de Auguste Comte. O templo ainda hoje é visitável, com pré-marcação.
O mais grave foi que, depois de implantarem a República, numa aliança entre idealistas, militares, latifundiários e positivistas, os seguidores de Comte se opuseram à democracia e ao desenvolvimento do ensino superior e da ciência moderna.
Em política, acreditavam que era necessária uma “dictadura republicana” “definitiva”, preconizavam “um governo responsável alheio à rhetorica” e acima do “processo absurdo das maiorias”. Substituíam o regime de democracia representativa por um regime plebiscitário, em que as decisões do “dictador” “hereditário” seriam sujeitas a uma consulta popular em “escrutínio descoberto”, para que se soubesse “a maneira que cada cidadão votou” (Miguel Lemos, 1889).
Em educação, os positivistas preconizavam “a supressão do ensino oficial, salvo o primário”, e a revogação dos “privilégios” concedidos aos “diplomas scientificos ou technicos”, substituídos pela “liberdade completa de profissões”.
Em ciência, acreditavam apenas naquilo que seria empiricamente verificável de forma direta. Diziam que o importante era fazer previsões ajustadas. Abandonavam como “metafísica” estéril” a tentativa de perceber as origens e causas dos fenómenos.
A matemática avançada não interessaria, pois seria especulação não verificável, a astronomia seria pouco mais que uma ciência oculta.
É célebre o dito de Comte segundo o qual jamais poderíamos compreender a constituição dos planetas e, muito menos, das estrelas.
Ironicamente, pouco tempo depois dessa categórica afirmação, a análise do espetro da luz emitida pelas estrelas mostrou que estas são constituídas por hidrogénio, hélio e outros elementos. Décadas mais tarde, os físicos perceberam a origem da energia das estrelas: a fusão nuclear. Esse fenómeno é hoje tão bem entendido que se consegue replicar essa fusão sobre a Terra – por vezes com efeitos desastrosos, como aconteceu com as bombas H.
O certo é que os positivistas conseguiram atrasar o desenvolvimento da ciência e das universidades brasileiras. Hoje, são uma curiosidade histórica.
O templo de Curitiba situava-se bem no centro, mas foi há muito derrubado e o no local construído um edifício moderno onde está sedeado um banco. O de Porto Alegre, perto do Colégio Militar, esteve muito tempo abandonado e semidestruído e só recentemente foi recuperado. O do Rio, situado no bairro da Glória, entre o Flamengo e o Centro, foi entretanto arruinado por um incêndio.
Estive nos três locais, e apenas no Rio tive sorte. Foi já há alguns anos, na altura em que comecei a visitar mais frequentemente e a admirar ainda mais a grande nação brasileira. Consegui então visitar o histórico edifício. Foi num dia de “missa de catecismo positivista”, missa que não chegou a ser realizada por falta de adeptos. Dei uma volta prolongada pelo edifício e, graças à amabilidade do guardião do templo, o senhor Danton Voltaire Pereira de Souza, que liderou a igreja até sua morte, em 2014, tive oportunidade de ver o primeiro esboço da atual bandeira do Brasil e outras relíquias sedeadas no local. Pouca gente o sabe, mas essa bandeira, concebida por Teixeira Mendes é, desde o dístico que sintetiza uma frase de Comte, até ao desenho das estrelas, inspirada pelo racionalismo positivista. Toda essa origem se dissolveu na voragem dos tempos.
Na Europa e mesmo no país de Comte, o positivismo é uma curiosidade histórica há mais tempo ainda. No princípio do século XX surgiria o neopositivismo filosófico e, pouco depois, a crítica de Karl Popper e de outros, que reabilitaram o papel da especulação no desenvolvimento de hipóteses falsificáveis e testáveis cientificamente. Na política, os regimes parlamentares desenvolveram-se, e os regimes autoritários buscaram outros fundamentos, mesmo mantendo uma aversão populista à “rethorica” e um desprezo pelo “absurdo das maiorias”.
Pouca gente reconhece hoje as raízes autoritárias do pensamento positivista brasileiro. Há coisas que a poeira dos tempos e a boa vontade dos homens desculpa. Será que fazemos sempre bem?