Considere, Caro Leitor, a seguinte situação.

Na qualidade de CEO da subsidiária em Portugal de uma multinacional, incumbe-lhe decidir, entre dois candidatos, qual recrutar para a função de ‘Controller’. As etapas anteriores do processo de selecção permitiram constatar que, em abstracto, os dois finalistas exibem um perfil equivalente no que concerne aos múltiplos quesitos estipulados – vg. idade, estado civil, residência, fluência em línguas estrangeiras, disponibilidade para deslocações frequentes ao exterior, etc –, com duas excepções: um deles tem conhecimentos profundos de Controlo de Gestão, de inspiração anglo-saxónica e vasta experiência na função, mas domina, apenas primariamente, as aplicações informáticas tradicionalmente utilizadas, enquanto o seu concorrente é excepcionalmente dotado neste domínio, embora a sua literacia na matéria seja menos elevada e de outra escola de pensamento, não obstante, a sua, também extensa, experiência prática. Caro Leitor, quem contrataria?

Questão ancestral, de matriz ‘shakespeareana’: Ser ou Parecer?

Questão intemporal, não tem merecido abordagem estruturada pelas ciências do comportamento, talvez pela sua natureza não académica, não obstante o seu enraizamento profundo na cultura de grupos e povos. Desde a mulher de César que era sem parecer até Pessoa que parecia que era, sendo, passando pelo popular Aleixo que parecia ladrão sem o ser, a questão cristalizou em inúmeros provérbios e ditados populares: “Em Roma sê romano”, “Muita parra, pouca uva”, “Nem tudo que reluz é ouro”, “As aparências iludem”, entre tantos outros…

Questão transversal, cruza os múltiplos domínios da vida humana. Na política, por exemplo, durante o consulado salazarista, a sobriedade do seu mentor reflectia-se na sociedade civil, onde quem era até podia ser, mas não devia parecer. Na década seguinte ao 25 de Abril, o país revia-se em políticos que o eram para, nos 20/25 anos seguintes, ser governado por técnicos, fortemente empenhados no reconhecimento público enquanto tal e, de então para cá, por funcionários, carreiristas partidários, ávidos de afirmação como políticos…

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O mundo empresarial fornece, igualmente, exemplos da questão, desde logo com a ‘produtivização’ de marcas como Kodak, Gillette, Chiclets, Bic ou, no Brasil, Xerox e, culminando, em termos publicitários, na orientação da percepção para produtos garante da conferência de atributos.

A academia não constituiu enclave de resistência à tendência, sufocada por gerações de pais ‘diploma-oriented’, baixou níveis de exigência, generalizando o ‘ser, apenas parecendo’ e deixando às empresas e outros empregadores, desde há quase três décadas, a ingrata tarefa de depurar a procura, orientar a oferta e mitigar ‘danos colaterais’ no(s) mercado(s) de trabalho.

O progresso colossal registado pelas TIC, no mesmo período, tem vindo a fomentar o recrudescimento da questão, proporcionando boas oportunidades, nas comunidades académica e empresarial, para a violação do consagrado princípio de ‘Substância sobre a Forma’, assiste-se amiúde a eventos – apresentações, conferências, seminários, sessões de Formação de Executivos ou até mesmo aulas… – que constituem verdadeiros ‘shows’ de tecnologia destituídos, contudo, de conteúdo relevante, fazendo recordar a estória dos ameríndios norte-americanos e o seu ritual ‘Dança da Chuva’, em que, a dado momento, estão mais preocupados com a qualidade da dança que com o estado do tempo!

Questão ancestral, porém, recorrente na sua formulação actual: Parecer sem Ser!

Grave mesmo é que o passar do tempo faz com que se seja o que se parece… Ora, se se é o que se parece e, se o que se parece não se é, então, é-se o que não se é!… Espiral de frustração, medo, ansiedade, angústia, depressão…

Protege-se a biodiversidade, o mar, a qualidade do ar. Mas, quem protege o Ser Humano de si mesmo? Da obsessão doentia de ser o que não se é? Da vertigem distópica que transforma uma questão simples num enigma: “Numa floresta deserta, uma árvore enorme cai. Fez barulho ou não?”