Nos últimos anos, a questão “Será que a inteligência artificial vai roubar os nossos trabalhos?” tornou-se um refrão constante nas discussões sobre o futuro do trabalho. No entanto, esta pergunta talvez seja uma distração. Desde o início da Revolução Industrial, cada avanço tecnológico trouxe receios de perda de emprego, ao mesmo tempo que abriu portas para novas oportunidades. Com a IA, é provável que não seja diferente: alguns empregos serão transformados, alguns podem desaparecer, e outros irão surgir. Mas a questão mais urgente — aquela que muitas vezes passa despercebida — não é essa. O ponto crucial é: quem colherá os frutos desta revolução? Serão os trabalhadores ou os detentores do capital?
Para compreendermos verdadeiramente o impacto da IA, precisamos de mudar o foco do “risco de perda de empregos” para o “destino dos ganhos de produtividade”. A IA, ao automatizar tarefas e otimizar processos, promete uma explosão de eficiência e produção. Mas, em vez de nos preocuparmos apenas com as categorias de emprego que serão afectadas, devíamos perguntar: será que este ganho de produtividade será distribuído de forma justa? Será que vai proporcionar aos trabalhadores mais tempo para o lazer, maior segurança financeira e, talvez, a oportunidade de se dedicarem a actividades culturais, artísticas e intelectuais que enriquecem o espírito humano? Ou será que esses ganhos ficarão, predominantemente, nas mãos de poucos?
Esta questão leva-nos a uma reflexão fundamental sobre o tipo de sociedade que queremos construir e lembra-nos uma visão intemporal. John Adams, um dos fundadores dos Estados Unidos, descreveu um ideal de progresso humano com uma clareza que ainda hoje ressoa. Ele disse: “Eu devo estudar política e guerra para que os meus filhos possam estudar matemática e filosofia. Os meus filhos devem estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, arquitectura naval, navegação, comércio e agricultura, para dar aos seus filhos o direito de estudar pintura, poesia, música, arquitectura, escultura, tapeçaria e porcelana.” Adams cristalizou um sonho de progresso: a construção de uma sociedade onde as gerações futuras estariam desatadas das necessidades e conflitos mais duros, livres para cultivar o espírito e a imaginação.
A promessa implícita na inteligência artificial é que ela poderia, de facto, aproximar-nos deste sonho. Ao automatizar tarefas repetitivas e de baixo valor, a IA teoricamente libertar-nos-ia para nos concentrarmos em actividades mais criativas e pessoais. Imagine uma sociedade onde as pessoas trabalham menos horas, em empregos menos alienantes, e têm a oportunidade de explorar a arte, a filosofia e o lazer. Onde profissionais se possam dedicar não só ao trabalho, mas também à poesia, à música e à reflexão. A IA oferece-nos um vislumbre desse futuro, que está longe de ser garantido.
A história mostra que os ganhos de produtividade nem sempre são distribuídos de forma justa. Nas últimas décadas, assistimos a um aumento acentuado na produtividade global, mas essa produtividade não se traduziu em melhorias equivalentes nos salários ou nas condições de trabalho para a maioria das pessoas. Em vez disso, grande parte do valor gerado beneficiou accionistas e executivos, contribuindo para o aumento da desigualdade. Se continuarmos a seguir o mesmo padrão, o avanço da IA provavelmente intensificará esta dinâmica, concentrando ainda mais riqueza e poder nas mãos de quem controla a tecnologia.
Portanto, se queremos um futuro onde os avanços da IA sirvam para realizar o sonho de John Adams — onde a tecnologia nos liberte e enriqueça cultural e intelectualmente — precisamos de uma estrutura de políticas e de ética que garanta que esses ganhos sejam distribuídos de forma justa. Isto significa enfrentar questões difíceis sobre propriedade, distribuição de rendimentos e o papel das instituições públicas na regulação e redistribuição da riqueza tecnológica.
A verdadeira questão, então, não é se a IA roubará ou criará empregos, mas se ela permitirá que trabalhemos menos e vivamos de forma mais plena. Poderá a IA permitir-nos passar mais tempo com as nossas famílias, cuidar da nossa saúde mental ou dedicar-nos às artes e à filosofia? Ou continuaremos presos num ciclo em que a produtividade aumenta, mas o trabalhador comum se vê cada vez mais exausto, sem tempo ou recursos para usufruir dessa produtividade?
O impacto da IA no futuro do trabalho é inevitável, mas o seu impacto na qualidade de vida será moldado pelas decisões que tomarmos hoje. Precisamos de garantir que o aumento da produtividade e a criação de riqueza associada à IA não perpetuem desigualdades, mas, pelo contrário, possibilitem uma vida mais rica e equilibrada para todos. Este é o desafio ético da era da IA e a verdadeira questão que deveríamos estar a debater.
Se olharmos para a IA não como uma ameaça de roubo de empregos, mas como uma oportunidade para finalmente realizar o ideal visionário de Adams, podemos trabalhar para que esta tecnologia realmente cumpra o seu potencial libertador. A IA pode, de facto, ajudar a construir uma sociedade onde cada um de nós tenha o “direito de estudar pintura, poesia e música” — uma sociedade onde o progresso técnico permita o florescimento humano. Esse é o verdadeiro objetivo que deveríamos perseguir.