A Justiça, no nosso imaginário, é uma deusa esbelta que se nos apresenta vendada, carregando numa mão, a espada, representativa da força, da prudência, e da ordem, ditadas pela razão e pela boa consciência, enquanto que na outra, equilibra uma balança, símbolo da equidade e da ponderação que, esperamos, estejam sempre presentes na aplicação da lei. A Deusa Justiça está vendada, para representar o nosso desejo íntimo que ela trate a todos por igual, sem distinção, com imparcialidade e objetividade.

A recente decisão instrutória da famosa “operação Marquês” atraiu a atenção mediática, merecendo, pela sua importância, ser analisada com sentido crítico, não apenas nos seus fundamentos e consequências, mas também, nos seus antecedentes e contexto, pois ela sinaliza um estado geral, não só da justiça, mas do Regime, nas suas diversas capturas, que é chegada a hora de avaliar. A título pessoal, dou nota que, ao longo dos anos, não tenho por hábito emitir opinião sobre processos judiciais em curso, sejam quais forem, tendo todas as incidências com impacto judicial que rodeiam José Sócrates merecido da minha parte – e até ao atual momento – o mais absoluto silêncio. Noto, ainda, que as decisões sobre os crimes em si, nesta fase, ainda não me suscitam opinião. Mas é hora de dizer que alguma das incidências deste caso me merecem – já – as maiores perplexidades, exibindo preocupantes fragilidades que põem em causa o Estado de Direito, o regime democrático, e a confiança que devíamos poder ter nas instituições políticas e na Justiça.

Algures na rede social Twitter, Miguel Poiares Maduro escrevia que “o Direito tem de fazer um mínimo de sentido para continuar a ser legítimo perante o povo”. Penso que este é o mote mais feliz para explicar o embaraço que sentiu qualquer cidadão de bem, ao ouvir o juiz Ivo Rosa, na leitura da decisão instrutória.

Desde logo, não é fácil aceitar que, num processo judicial com esta importância, haja uma tão grande diferença de apreciação dos factos e do Direito por parte daqueles a quem, no plano das instituições, compete fundamentar e organizar a acusação. A leitura de uma decisão instrutória, que deveria ter uma dimensão meramente técnica, de ajustamento da acusação, tornou-se palco para que todo o país se apercebesse que, afinal, dos 28 arguidos acusados de um total de 189 crimes, apenas 5 seguem para julgamento, acusados de um total de 17 – sim, apenas 17 – crimes. Sócrates vai a julgamento por apenas 6 dos 31 crimes iniciais. Entre putativas prescrições, erradas qualificações de crimes, nulidade na recolha de provas, e diferentes interpretações jurídicas, a conclusão a que se chega é que, em Portugal, há tantas formas de ver a lei e o direito como cabeças pensantes, intervenientes no processo. E que essas divergências nos são apresentadas, não apenas numa dimensão técnica, mas com uma enorme carga afetiva e graus de pessoalização que não esperamos encontrar, na boca de quem tem como função ser imparcial, prudente e razoável. Ora, se o contraditório é saudável, e é nos pesos e nos contrapesos que desejavelmente devemos procurar a verdade, também parece certo que, uma coisa é pluralismo jurídico, outra é a cacofonia que nos foi dedicada, que os cidadãos não podem aceitar. Não sei se Ivo Rosa tem ou não fundamentos sólidos para suportar as apreciações que faz sobre o trabalho do Ministério Público, e sustentam a sua decisão instrutória. Eram, porém, dispensáveis todas as considerações e floreados utilizados na leitura da decisão instrutória, sinalizando um mal-estar que descredibiliza toda a Justiça, da qual ele é um dos principais rostros. No mesmo sentido, foi doloroso ver tantas personalidades com relevo na justiça em Portugal, desmultiplicados pelos diversos órgãos de comunicação social, a aproveitar esta decisão para exibir os seus maus fígados em relação ao Ministério Público.

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Já José Sócrates decidiu festejar a sua vitória de Pirro exibindo, na comunicação social, os seus dotes de romancista e manifesto bom orador, oferecendo-nos toda uma versão sobre os factos que, nos seus delírios, leva qualquer português descomprometido a pensar: como é possível que este homem demore tanto tempo a ser condenado? O que é que se passa nos meandros da investigação criminal, na organização das acusações, na implacabilidade da máquina fiscal, nos tribunais de apelo e apreciação constitucional, para que passados tantos anos, ainda seja possível haver espaço para que este homem continue a alegar em prime time e em sua defesa, a fortuna da sua pobre mãe, a generosidade do seu fiel amigo, o seu amor ao saber e ao estudo, as suas boas ligações a decisores como o antigo vice-presidente de Angola, ou de países como a Venezuela ou Argélia, ou a sua grande capacidade para fazer permutas de obras de arte?

Uma das funções do processo penal e do apuramento da verdade passa por ressarcir a sociedade pelos crimes praticados. Chegados a 2021, os cidadãos continuam sem ver apurada a verdade, e sem que o país tenha recuperado o que se antecipa, hoje, com mediana clareza, poderem ter sido os avultados montantes envolvidos nos atos de corrupção praticados, em larga escala, por José Sócrates – e por todos aqueles que com ele operaram. Mais grave, é que não é possível ignorar que José Sócrates liderou um executivo que, entre 2005 e 2011, levou Portugal até uma bancarrota, defendendo que a forma de gerir o país passava por uma enorme acumulação de dívida e a realização de gigantescos investimentos públicos. Ora, sob a governação de José Sócrates, Portugal viu crescer a sua dívida pública, em 42,2% do PIB, de 72,2% para 114,4%, um volume gigantesco de dinheiro que, hoje, em 2021, é legítimo questionar se visou responder a estímulos keynesianos ou alimentar fraternidades do tipo siciliano. Esta dúvida mina e corrói a saúde do nosso regime, perante os cidadãos, e descredibiliza a Justiça, abrindo espaço para a desesperança e para o populismo.

Quem conheça minimamente o sistema judicial português, sabe que há duas limitações estruturais que conduzem, diretamente, ao atual estado de coisas: a ausência de meios e recursos, técnicos e humanos, adequados para a investigação e a tramitação, e a interferência manifesta de um espírito corporativo que retira imparcialidade ao processo judicial, sobretudo nos casos mais importantes e de “regime”. Ora, não é possível ignorar que José Sócrates está a beneficiar diretamente de uma realidade para a qual contribuiu, ele próprio, como primeiro-ministro de Portugal, desde a ausência de meios e recursos para a investigação, à dislexia que abre espaço a inúmeras interpretações sobre as leis em aspetos tão relevantes como a prescrição, e do espírito corporativo que retira imparcialidade ao processo judicial.

Quem conheça minimamente o sistema judicial português, sabe que a nova criminalidade emergente é muito exigente, e que dificilmente seremos capazes de assegurar a justiça, e proteger direitos fundamentais e patrimoniais numa era digital, num mundo globalizado, sem uma profunda reforma da justiça, desde as instituições policiais e de investigação, ao ministério público, às magistraturas judiciais, à própria advocacia.

Aparentemente, os crimes de corrupção de que José Sócrates estava indiciado, estarão prescritos. Já o sistema judicial que não o conseguiu condenar, o sistema político que lhe deu espaço de manobra, e o núcleo partidário que o acolheu e promoveu, na generalidade dos seus protagonistas, continuam ativos. No rescaldo da pandemia, Portugal vai ter pela frente desafios hercúleos para responder às expectativas naturais de cidadãos que integram um espaço de modernidade, europeu e ocidental. Ora, não se vê como será possível vencer os desafios do futuro de uma forma saudável sem uma profunda reforma da justiça, mas, também, sem que no sistema partidário e político haja uma profunda rotura geracional e de renovação dos atores e protagonistas. Constatando que, na generalidade dos partidos, os protagonistas de ontem se perfilam para continuarem a ser, os heróis do amanhã, não auguro nada de bom.