Após um interregno de alguns dias fora do alcance das notícias, vi os últimos desenvolvimentos do caso Influencer com o descrédito habitual que contabilizo a quem nos governa.
A frase de António Costa, “À Justiça o que é da Justiça”, é uma expressão que, sob a aparência de urbanidade e civilidade liberal, enfatiza um conceito absolutamente imprescindível à democracia – a separação dos poderes. Contudo, organização em separado não lhes retira a interdependência resultante dos controlos supervisionados. Todos têm contrapesos, todos têm de prestar contas. Ora é neste controlo mútuo, nesta zona cinzenta de contornos mal definidos que os equívocos frequentemente surgem.
Quando o caso Influencer se tornou público e as primeiras trapalhadas começaram a ser notadas, logo pareceu evidente que os protagonistas padeciam do que para efeitos de escrita denomino como “Complexo Sócrates”. Uns por terem um “amigo” ao barulho, outros procurando ser diligentes, outros para não repetirem erros do passado e ainda alguns por medos inconfessáveis, todos os intervenientes quiseram ser lestos em evitar os erros da Operação Marquês. Resumidamente um complexo de culpa, o “Complexo Sócrates”.
Contudo, desde a Operação Marquês, o que mudou na justiça portuguesa, para além dos protagonistas, foi uma mão cheia de nada. E não tendo mudado nada de monta, exceção para uma tentativa proposta por Rui Rio e que todos ridicularizaram, quando o caso Influencer se inicia, o que de diferente havia para apresentar era apenas um maior voluntarismo nas decisões. Uma vertigem que rapidamente se estendeu a todos os intervenientes.
Esta foi uma das primeiras impressões que tive desse processo. Porém, ter apenas mais celeridade em procedimentos que antes tinham resultado em “m****”, desculpem-me a expressão, dificilmente iria resultar em leite e mel.
Para além do ridículo dos protagonistas e de nenhum deles jorrar coisa boa, a expressão “À Justiça o que é da Justiça” deixa-me sempre inquieto.
À partida, esta seria um objectivo benigno se dignatários do sistema judicial e políticos em particular fossem competentes. Se os políticos fizessem o que lhes compete, se os governantes governassem e a oposição fosse eficaz, se tudo assim fosse, não teríamos a justiça tentada a intrometer-se em zonas de separação menos claras.
Citando José Ribeiro e Castro, num artigo publicado online em 14 de Abril de 2021, a expressão “à Justiça o que é da Justiça” implica que nem os políticos se devem intrometer nos assuntos da Justiça, nem o inverso é aceitável. Para Ribeiro e Castro, e bem, este sofisma da democracia liberal não significa contudo que os poderes se exerçam sem controlo – é lícito e vantajoso para todos que todos sejam escrutinados. Este é um sublinhado que lemos no seu texto, mas há outros desenvolvimentos que podemos inferir. Quando um poder não é exercido de forma competente, seja na acção executiva, seja na sua fiscalização, outros podem ser tentados a ocupar esse espaço. Sempre que o poder executivo incorre em deslises de natureza ética, sempre que a oposição não os sinaliza de forma eficaz, o sistema judicial tende naturalmente a preencher esse espaço. É por isso que entendo que “à Justiça o que é da política” é uma consequência da conjugação em simultâneo de um mau governo com uma má oposição. E claro, quando um Ministério Público atua corporativamente e comunica para o exterior por uma via “sindical”, esta tendência ainda mais se acentua.
A 17 de Novembro Henrique Neto escreveu no Observador um artigo de opinião – “A quem aproveita a crise?”. Nesse artigo passou despercebido um comentário que o autor fez sobre as características dos negócios envolvidos no caso Influencer e o tipo de corrupção a que podem estar associados. Sugere Henrique Neto que nestes negócios há um promotor local, individual ou coletivo, que articula os interesses dos investidores e, agindo como intermediário, procura, entre as baias do articulado legal e as “boas vontades” facilitadoras, dar continuidade aos interesses dos investidores. O promotor local não tem os recursos para cobrir os encargos do negócio nem os meios para corromper. Só pode traficar influências entre investidores e os que têm o poder de influenciar o processo de decisão. A corrupção, a haver, ficará sempre para um momento posterior. É isto que Henrique Neto nos sugere.
Até aqui, se tudo fosse claro e escrutinável, pouco haveria de reparo. Porém, num país que tem a “cunha” instituída, é difícil distinguir as repercussões morais que este hábito tem na vida pública e privada. E à medida que as dificuldades resultantes de uma burocracia pastosa vão surgindo, os promotores usam a sua rede de contactos para se posicionarem como “facilitadores” do negócio. Tornam-se imprescindíveis. Quando olhamos para estes “promotores” e questionamos que atributos têm para justificar as “liberalidades” que acumulam, quase sempre chegamos à mesma conclusão, conhecem a pessoa certa – são “facilitadores”. É por isso que quando nos deparamos com projetos financiados pelo erário ou classificados como PIN, logo o “sexto sentido” fica ativado.
O caso da Lusoponte, em que um ministro responsável pela aprovação do projecto creio ter sido o primeiro a transitar nessas condições para a administração da empresa detentora da PPP. Foi ilegal? Creio que não, mas o odor não é de leite ou mel. Sobre as PPP’s muito mais haveria a apontar. Em Portugal estes negócios funcionaram sempre como investimentos de retorno garantido e, eventualmente, fonte de gordurosas ilicitudes.
A este propósito recordo-me do caso de João Cravinho, um dos promotores das PPP’s das autoestradas e vias rápidas e do processo de 1997 que envolveu a JAE e o General Garcia do Santos. O caso conta-se rapidamente. Por essa altura João Cravinho, Ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território no XIII Governo Constitucional, terá pedido ao seu amigo e colega de curso para que este averiguasse da utilidade das PPP’s. Após o estudo que fez sobre o assunto, o general Garcia dos Santos terá dito ao amigo que este era um negócio ruinoso para o erário. Com um parecer tão demolidor, segundo relatou posteriormente, não podia ficar senão surpreendido quando viu o negócio das PPP’s das autoestradas e vias rápidas ser concretizado. Questionou o ministro sobre a decisão, ao que este lhe terá respondido que os partidos do sistema, PS e PSD, apoiavam ambos o negócio e que tinha tido indicações explícitas para avançar com o negócio. Estes factos constam das audições na AR, do processo de julgamento, estão publicados na imprensa online e foram relatadas pelo próprio numa entrevista à TSF.
Do processo, o general foi condenado ao pagamento de uma multa de 670€ (quem se mete com o PS… ), a JAE foi extinta um ano depois, em 1999, e João Cravinho não foi reconduzido no cargo no XIV Governo de Portugal. Curiosamente, João Cravinho conseguiu ficar para a história como paladino da luta contra a corrupção, mas este episódio, a suposta “traição” do amigo e a forma como aceitou ser “despachado” para Londres por outro “paladino da luta contra a corrupção” são “rabos-de-palha” que a história regista.
Que pena tenho que Medina Carreira não esteja entre nós. Falecido em 2017, teve durante anos na TVI24, com Judite de Sousa, o programa Olhos nos Olhos, onde comentava a política nacional. Nesse seu espaço mediático, lembro-me dos comentários sobre o “homem da mala”, aquele que transporta para os partidos as contribuições angariadas pelos “facilitadores”, e que, segundo afirmava MC, retinha cerca de 60% dos montantes a título de “despesas”. Como gostaria de o ouvir comentar os “separadores” de livros e os “recheios” das caixas de vinho de agora. Os tempos da “mala”, seguramente já eram! Mas estes up-grades? Francamente!
Como gostaria de ouvir o seu comentário sobre o caso Influencer, o papel de Vitor Escária nos governos de José Sócrates e António Costa e a declaração deste último reprovando o seu chefe de gabinete. Então, não pode haver uma explicação para se ter dinheiro no gabinete? Condenar sem pedir explicação, só acontece porque esta já é conhecida. E dado o curriculum, este conhecimento não deve ser de agora!
No caso Influencer estão incluídos negócios relacionados com a exploração de lítio, a produção “hidrogénio verde” e outro relacionado com a localização física de uma “mega” base se dados. Os dois primeiros nunca me pareceram descolar do reino do greenwashing, uma fraude que, à boleia das “alterações climáticas”, aproveita o temor instilado nas populações para promover negócios de interesse público não demonstrado. O terceiro, o Mega Data Center, não sei bem a que se destina, mas o raio do nome lembra-me sempre o “pavilhão transfronteiriço” de Caminha. Mas talvez seja defeito meu!
Resumindo, nenhum destes projetos tem a bondade e o interesse devidamente demonstrados. Por exemplo, em relação ao “hidrogénio verde”, este é, aos dias de hoje, apenas uma aposta, não sendo seguro que as fontes de energia alternativa do futuro sigam esse caminho. O que suspeito é que na retaguarda dos contratos existam cláusulas que salvaguardem rendimentos garantidos. Onde já vimos este filme!
Todos estes negócios, ou porque recorrem a fundos públicos, ou porque necessitam de autorizações especiais, deviam ser exaustivamente escrutinados para que não restassem dúvidas das condições e riscos que representam.
Não há mal em que um governo os apoie abertamente, mas é necessário que a oposição seja eficaz no seu controlo e acompanhamento. Quando há intervenientes no processo que já vinham do (des)governo de Sócrates, quando os negócios do Estado são tratados pelo “melhor amigo”, quando os negócios são adjudicados a empresas constituídas três dias antes, é preciso ser-se muito anósmico para não se notar que se não está na presença de leite e mel.
E ser eficaz é ter uma oposição eficaz. Um bom governo necessita disso para que não se acumulem dúvidas. Era isso que se pedia ao PSD. Pedia-se que fosse competente na fiscalização da ação governativa e dos decisores políticos. E não foi. Talvez porque faça parte do “centrão” político que sempre nos governou e que no conjunto é o grande responsável pelos casos de corrupção política que conhecemos. Talvez porque boa parte dos que na oposição estão em posição de escrutinar as condições políticas ocupem cargos que dependem da “boa vontade” dos governos, ou esperam poder vir a ocupá-los num próximo governo da sua tribo.
Seja por que motivo for, a oposição oficial do sistema, o PSD, foi ineficaz no escrutínio da coisa pública e na ação governativa. O governo foi incompetente e permitiu as condições para que a corrupção pudesse ocorrer. Mas o seu contrapeso, a oposição responsável pelo escrutínio, o PSD também alinhou pelo mesmo diapasão, também foi incompetente. É por isso que o poder judicial se permite extravasar as suas competências e ocupa o que seria a obrigação de outrem.
Creio que esta é uma perceção que boa parte dos portugueses têm dos partidos políticos e é por isso que cada vez mais se afastam do centro político. O centro é corrupto, é assim que se tem comportado, é assim que é visto.
Se José Luís Carneiro ganhar a liderança no PS, o que não acredito, nas eleições de março, PS e PSD juntos não devem somar muito mais que 50% dos votos. Se nas eleições internas Pedro Nuno Santos ganhar o PS, em março ele surgirá como o próximo PM, mas o Chega vai ser uma surpresa. Prepare-se! O “centrão” tem os dias contados!