Num período em que se avalia o legado dos oito anos dos governos chefiados por António Costa, vale a pena recuperar um dos lemas mais repetidos pelo primeiro-ministro demissionário: o da “reposição de rendimentos”. Este mote procurou estabelecer um forte contraste entre um governo de direita que reduzira indevidamente o nível de bem-estar dos cidadãos e um executivo socialista pronto a restituir os direitos e benefícios perdidos. Ora, a tese implícita nesta narrativa é a de que a justiça social é um desígnio exclusivo da esquerda.

Esta máxima de António Costa não é particularmente original. Trata-se de uma ideia que se disseminou desde a criação do socialismo moderno e que teve, cumpre reconhecer, algum fundamento histórico. Com efeito, foram os partidos trabalhistas, social-democratas e comunistas que lideraram a mobilização política em torno da chamada “questão social” em benefício dos mais vulneráveis. Por essa razão, o importante papel da esquerda na abertura de um novo filão de combate político em prol de sociedades mais justas é inegável.

Mas passaram-se muitas décadas desde que esse filão foi aberto. Neste período, muita coisa mudou, tanto à direita, como à esquerda.

Para muitos conservadores, democratas cristãos e até alguns liberais não libertários, a justiça social é hoje uma componente essencial de qualquer sociedade que se possa dizer bem organizada. Para os conservadores, a justiça social fomenta os laços sociais e o espírito de comunidade. Para democratas-cristãos, ela é indispensável para a realização do ideal de dignidade humana. Para os liberais não libertários, ela é um instrumento que ajuda os trabalhadores a se erguerem pelo seu próprio pé em períodos de transição económica.

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Desta maneira, nenhuma das grandes famílias políticas na direita europeia contesta, atualmente, a importância da justiça social.

Em sentido inverso, algumas alas da esquerda tornaram-se reféns de ortodoxias ideológicas que as afastam de uma eficaz prossecução do seu propósito original de promover a justiça social. Tal aplica-se, sem dúvida, ao caso do governo cessante, que apesar de ter tomado algumas medidas tendentes à redução as desigualdades, como o aumento do salário mínimo, viu esses esforços esbarrar noutras políticas de sinal contrário.

Considere-se a expansão da função pública, que atingiu este ano um valor recorde, superior a 740.000 efetivos. Ora, o desígnio socialista de fazer da função pública um “elevador social”, financiado por impostos que incidem sobre todos, acaba por criar enormes desigualdades entre o sector público e o sector privado. Com efeito, de acordo com o Boletim do Instituto Nacional de Estatística (INE) de maio de 2023, a remuneração bruta média mensal nas administrações públicas era de 2.019 euros, muito acima do valor do sector privado, correspondente a 1.355 euros. Estas desigualdades são também visíveis num acesso diferenciado à saúde por parte dos funcionários do Estado, através da ADSE, e numa estabilidade profissional incomparável à que se aplica aos restantes trabalhadores.

Veja-se, também, a onerosa nacionalização da TAP em razão do seu alegado “valor estratégico”. Vale a pena referir que se trata de uma companhia onde, segundo o próprio governo, um comandante pode ganhar até 260 000 euros anuais, muito acima das suas concorrentes internacionais, como a Iberia e a Air Europa. A decisão de a nacionalizar, a expensas de uma injeção milionária de fundos públicos, não poderá servir os interesses dos mais pobres, nem segundo a argumentação económica mais criativa.

Note-se, ainda, a tão falada resistência do governo a um compromisso com um programa de reformas estruturais ambicioso que, como aponta o Banco Central Europeu, permitiria combater obstáculos institucionais e regulamentares a uma produção eficiente e justa. Por exemplo, reformas cirúrgicas destonadas a reduzir os enormes atrasos na justiça e a acelerar a transição digital na administração pública poderiam gerar mais e melhor emprego e possibilitar uma redução da enorme carga fiscal que se abate sobre os Portugueses.

Como resultado destas e de outras opções políticas, o país está muito longe da realização de um pressuposto básico de justiça social: assegurar a todos os cidadãos um nível de vida digno. Após 14 anos de governos de esquerda ao longo das últimas duas décadas, Portugal continua a ser um país demasiado pobre para poder ser, efetivamente, justo. Não obstante a sua tendência decrescente, a taxa de pobreza continua cronicamente elevada, tendo-se situado, segundo o INE, nos 16,4%, em 2021, e sendo uma das mais altas da União Europeia.

Creio que o novo ciclo político que se avizinha irá abrir uma janela de oportunidade para a direita portuguesa se afirmar como indiscutível promotora da justiça social. É tempo de substituir o lema da “reposição de rendimentos” por um alternativo: o da “criação de rendimentos”. Só um crescimento sustentado da riqueza gerada pelo nosso país, assente no aumento da competitividade, e acompanhado por políticas redistributivas eficientes, possibilitará uma melhoria significativa das condições de vida de todos.

Até que esse dia chegue, receio que a esquerda se continuará a apropriar, indevidamente, da ideia de justiça social.