Escrevo estas linhas do Alentejo, mais particularmente do Sudoeste, próximo da Costa. Por estes dias, depois da chuva, o sol brilha durante a manhã até perder a força pelas quatro da tarde. Pouco depois das cinco, anoitece. Desaparecida a chuva, chegou o frio que, apesar do sol, junto com a humidade e a nortada marítima, entranha-se nos ossos. De madrugada, aqui na Serra, os termómetros chegam aos negativos pelo que, com os dias curtos, as poucas horas de sol não são suficientes para manter a casa quente e agradável sem que se acenda a lareira mais cedo, e mais forte. Foi o que acabei de fazer, ainda antes das quatro da tarde.
Encavalitando pequenos galhos recolhidos do terreno envolvente ao monte junto com cascas de eucalipto que a lenha largou no chão, tendo como base duas pinhas, o fogo, uma vez evocado, rapidamente galga a pilha de lenha que de forma metódica organizei, inundando a lareira de chamas e largando um leve aroma pela sala. O cheiro, agradável, inconscientemente antecipa o conforto do lume, do calor, tal como os sons largados pela madeira que crepita afagam os ouvidos, embalando, acarinhando, separando de forma indelével o “cá dentro”, confortável, protegido, acolhedor, do “lá fora”, inóspito, agreste, frio e solitário.
Sento-me no meu cadeirão, à janela, ao lado da lareira, com o intuito de ler. Mas, talvez motivado pelo café, ainda fumegante, amargo, forte, que acabei de ferver no fogão da cozinha, foge-me a vontade para a escrita. É a simplicidade dos elementos, do fogo que aquece e coze, da água que se torna café, do ar que se respira carregado de odores, da terra que compõe as paredes de taipa que abrigam, compondo, numa complexa mistura daquilo que é elementar, um quadro que demonstra o quão imiscuídos de facto estamos, e somos, no mundo que nos rodeia e que nos faz.
Por vezes, na cidade, rodeados de máquinas, robótica e betão por todos os lados, agarrados à tecnologia cibernética, tendemos a esquecer essa “simplicidade”, e esse mundo real, imaginando-nos como que pairando numa nuvem, progressivamente mais digital, levitando por cima do planeta, como que deuses ou anjos que transcendem as vicissitudes de um mundo que, apesar de inóspito e cruel, continua lá em baixo, apenas que longe, portanto aparente e ilusoriamente tornado irrelevante à nossa vida e sobrevivência.
Com a temperatura regulada pelo ar condicionado, as refeições asseguradas pela conveniência da micro-radiação controlada ao grau e ao segundo ou, hoje em dia cada vez mais, a pedido, pelo telefone, à distância de poucos minutos corridos a bicicleta por algum imigrante que aceite o trabalho pejado de suor, mas sem glória, as necessidades satisfazem-se sem esforço. No fundo, é a “cidade dos quinze minutos” da qual as elites do mundo tanto falam que se impõe, aparentemente de forma natural.
No entanto, empacotados em estúdios e T0 de poucos metros quadrados, a minutos de receber o jantar ou deslizar por tapetes e escadas rolantes até algum supermercado, sem necessidade de deslocação automóvel, o homem citadino contemporâneo, sem que se aperceba, vê a bolha que compõe o seu raio de acção, paradoxalmente, crescentemente reduzida. Ora, a justificação para essa redução deriva, precisamente, destes dois princípios estruturantes: o do anjo que paira sobre o mundo, transcendendo-o, logo podendo dar-se ao luxo de não o pisar — sem “pegada”, portanto — e o da conveniência que tudo permite ter, sem esforço ou sacrifício, já, imediatamente, ou, pelo menos, e de acordo com o conceito e respectivo slogan, no espaço de quinze minutos.
As elites aproveitam a oportunidade. Desde sempre que a maior ameaça aos poderes instituídos é a liberdade das pessoas e, por conseguinte, dos mercados. Vindos de longe, a cavalo, a burro, ou mesmo a pé, os artesãos, mercadores e agricultores sempre bateram às portas dos castelos para trocar os seus produtos com o intuito de verem recompensados os seus esforços e talentos. Aí, no “mercado”, esses mesmos esforços e talentos, através da troca, desde que há memória, combinam-se numa distribuição de bens que melhoram a vida de todos — ninguém vai ao mercado para perder coisas, ou sair de lá pior do que como chegou. A seu tempo, trocando, criando e trabalhando, acima de tudo, inovando, o mercado permitiu a subida de quem nada tinha até à riqueza — hoje, no Século XXI, no pináculo das sociedades desenvolvidas e de mercado dito livre, os mais pobres da sociedade têm melhores condições de vida e consomem mais bens de maior qualidade do que imperadores e reis de séculos passados.
No mercado — aberto, saudável, justo porque de igual acesso e com regras iguais para todos — todos ganham, ou podem ganhar, é certo, mas apenas se produzirem mais e melhor do que outros que, por sua vez, têm que se adaptar e passar a produzir outras coisas, melhores, mais desejáveis, sob pena de perderem a clientela. Ou seja, o mercado livre premeia o esforço, o trabalho, a qualidade e a inovação tal como penaliza a preguiça, a falta de qualidade, a falsificação e a cristalização. Ora, isso força os bem-sucedidos a continuamente conseguirem ser os melhores, os mais inovadores, isto se não quiserem perder o estatuto. Tal coisa não é fácil de manter, menos ainda ad perpetuam, daí que seja apelativo para quem está no topo do mercado inventar estratégias para dificultar o caminho da concorrência, tornando a sua vida mais fácil e a dos outros mais difícil— recorrendo à batota, portanto.
É disso mesmo que se trata quando vemos os mais ricos e poderosos no mundo da finança e da economia global a clamar por mais impostos para pagar “justiça social”, ou sugerindo cada vez mais regras para respeitar a “sustentabilidade” e a “responsabilidade” políticas, sociais e ambientais. Não nos iludamos, não é a generosidade que os move. Ao contrário do que as milionárias campanhas de marketing por eles inventadas, e pagas, nos querem fazer acreditar, é a intenção de criar entraves aos concorrentes — quer os presentes, mais pequenos, quer os futuros — que os motiva.
Desses apelos, normalmente pagos com subsídios e bolsas “generosas” que geram “estudos” fajutos e boa-imprensa, saem novas regras, regimentos e regulamentos, burocracias, requerimentos e procedimentos, taxas, taxinhas e impostos, emolumentos, tarifas, tudo coisas que se repercutem nos bolsos dos consumidores e que dificultam, se não impossibilitam, a vida dos empreendedores que, de outro modo, iriam inovar e concorrer com quem manda hoje no mercado. Tal concorrência evita-se, então, através de uma posição dominante no controlo dos mercados, seja, directamente, através da interferência no processo político que decide as regras, seja, indirectamente, nos media, porque os detém ou subornam com publicidade e compra de assinaturas, garantindo que o espaço público é favorável à “regulação” que lhes convém.
Progressivamente, ao longo dos anos, os mercados foram sendo tomados pelos “poderes que são”. Desde a ultra-regulação de todo e qualquer estabelecimento comercial ou industrial, passando pela usurpação de, em casos como o português, mais de metade da produção nacional em impostos que são gastos a controlar o que se faz e como, até à completa ficção que é um sistema financeiro global assente em moedas que nada representam, salvo uma inusitada e ingénua fé “no sistema”, o mundo globalizado, hoje em dia, está grosso modo nas mãos de um cada vez menor número de empresas e actores globais.
Pior. Em nome da salvação planetária, a coberto do slogan das “alterações climáticas”, algo convenientemente tão indefinido que se confirma quer pelo aquecimento quer pelo arrefecimento do clima, quer pela chuva quer pela seca, vêm agora os mais poderosos do mundo, aqueles confortavelmente sentados no trono do World Economic Forum, exigir que se controle, não apenas o mercado, ou seja a forma como se troca, mas tudo aquilo que se produz, vende ou consome.
Biliões são gastos em propaganda para convencer as pessoas, as tais que já se imaginam como anjos que pairam, que serem anjos não basta, é preciso que sejam deuses do bem, da salvação planetária, sob pena de, em não seguindo o caminho proposto, serem vilipendiados na praça pública “politicamente correcta” como demónios, verdadeiros agentes do mal vindos ao mundo para destruir o planeta e aniquilar a Humanidade e todos os animais e plantas num apocalipse sem igual, terrível, definitivo, que espreita já aí ao virar da esquina. Em troca, além da salvação, prometem as elites reunidas em Davos que o povo será feliz consumindo menos e sendo dono de nada, ou quase nada, vivendo por subscrição nas suas pequenas bolhas ligadas ao ciberespaço.
Naturalmente, o slogan e os princípios, como todos os pactos faustianos que prometem a salvação e a harmonia divina no aqui e agora da vida terrena, não passam de um engodo. Onde se vende libertação e facilidades convenientes face ao mundo, afinal apresenta-se uma prisão tremenda que limita o que se faz, onde se vai, o que se come, como se vive. O humano moderno, o tal pseudo-anjo que paira e salva o mundo não interferindo pela negativa, apenas pela positiva, por exemplo salvando os animais e as plantas em perigo de extinção, é o mesmo a quem se pede, para que não largue pegadas por onde quer que ande, que se alimente de insectos e lesmas secas, abdique da carne natural, não cace, não pesque, não viaje de avião, menos ainda de carro (a não ser que seja eléctrico), aceite um controlo estatal da quantidade de emissões de carbono que estão ao seu dispor e, muito importante, não questione ou sequer se atreva a colocar em causa a “ciência” que justifica todas essas medidas totalitárias e impeditivas da liberdade individual.
Ou seja, em troca de uma prometida ascensão, ganha-se uma prisão. Menos abundância, menos consumo, menos vida, menos liberdade, eis a promessa do “novo normal” onde o Estado e as elites corporativas globais decidem a régua e esquadro como se devem distribuir as emissões autorizadas de dióxido de carbono humanas — para a nossa salvação, pois claro. Haverá melhor controlo do mercado do que este?
Infelizmente, a propaganda e a manipulação das massas tem surtido o seu efeito, pelo menos por enquanto. Em breve, já por daqui a um ano ou dois, apresentam-se as novas moedas digitais centrais que serão capazes de controlar todas as transacções, todo o consumo, tudo o que compramos ou queremos vender, isto ao mesmo tempo em que, como nos ensina a História, quanto mais controlada uma sociedade for, quanto menos livre o mercado, então menos abundância e riqueza existirão. O crescente controlo central do sistema criará, então, cada vez maior escassez, escassez essa que as elites — que continuam a viajar de avião privado para as reuniões que decidem o que devemos ou não produzir e vender — utilizam como justificação para exercer cada vez mais controlo. Surpreendentemente, é na erosão da soberania nacional e na integração global que ameaça morrer o livre mercado junto com a liberdade individual.
A seu tempo, esta minha tarde passada à lareira será uma impossibilidade. Afinal, como me atrevo eu a aquecer-me queimando árvores e emitindo o carbono que, saindo pela chaminé, destrói o mundo junto com o seu cheiro a lenha queimada? Ou, por outras palavras, como me atrevo eu, imerso no mundo, vivendo como sempre se viveu desde tempos imemoriais, a existir? Essa é a verdadeira “indignação” que, a reboque da propaganda, os homúnculos imaginados anjos — verdadeiros demónios, no entanto — verberão pelas suas goelas estridentes, tão ignorantes quanto insuportáveis.
Isto porque, somos nós, os humanos, forma de vida baseada em carbono. “Emissões zero”, não esqueçamos, implica apenas, na realidade, “vida zero”. E que seja nas sociedades mais ricas, mais livres e mais avançadas que se polua menos, isso não parece interessar aos senhores do mundo. A esses apenas interessa o seu poder, a sua riqueza, o seu controlo — a expensas da nossa liberdade, destruindo o nosso mundo, usurpando a nossa vida.
Revoltemo-nos, pois então. Pelo direito a viver em paz.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.