Desde a invasão russa da Ucrânia, na eufemisticamente chamada “operação militar especial”, as atrocidades da guerra voltaram a abalar a nossa rotina diária, através das duras reportagens dos inúmeros jornalistas no terreno. A abundância de imagens – sem precedentes – talvez provoque na maioria aquela desolação horrorizada que, na literatura e no cinema, o ficcional Kurtz tão bem personificou. Mas se a afluência de repórteres já contribuiu para que aprendêssemos a pronunciar o nome das mais recônditas povoações do território ucraniano, o mesmo já não sucede face a áreas geográficas relativamente às quais, no nosso cantinho ocidental, estamos a leste.

Ante um país onde os opositores ao regime denotam uma curiosa propensão para ingerir substâncias tóxicas ou se precipitar de janelas – como sucede amiúde na Rússia –, um cínico talvez recomendasse que se aperfeiçoassem os mecanismos fiscalizadores da qualidade dos alimentos ou da construção dos edifícios. Já um idealista talvez se desiludisse ao constatar que o recurso às instâncias judiciais se revela infrutífero, dado que, segundo relatos de jornalistas, os tribunais tendem a decidir desfavoravelmente esses casos: umas vezes, qualificando-os como “vandalismo”; noutras, inclusivamente, detendo os próprios queixosos. E seria um equívoco supor que se trata de um dano colateral da invasão da Ucrânia: ainda antes dessa data, já haviam sido endurecidas leis restritivas que, por exemplo, proibiam a publicação de informações de teor privado sobre detentores de cargos públicos. De resto, se algum efeito indirecto a guerra teve, foi inverter a posição relativa dos aliados bélicos no Índice de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, assumindo a Rússia o lugar até aí ocupado pelo títere de Minsk enquanto país europeu com a classificação mais baixa (actualmente, 155º) nesse ranking anual. Ainda assim, a regularidade das detenções, agressões e assassínios tornam muito similar a repressão da liberdade de imprensa em ambos os países: como alega a activista e líder da oposição, Sviatlana Tsikhanouskaya (confesso, fui verificar o nome no Google), também na Bielorrússia o aparelho estatal controla todos os meios informativos. Excepto para quem aprecie boa ficção, as fontes oficiais são inúteis.

No entanto, esses constrangimentos não são um exclusivo do leste europeu (independentemente da ambiguidade conceptual do termo). Aliás, não há muito tempo, a própria comissária europeia Věra Jourová calculava que os registos de ataques a jornalistas, na União Europeia, ascendiam quase às nove centenas; e um dos mais expressivos, por acaso, até se situou bem a sul, vitimando Daphne Caruana Galizia. Um destino semelhante, diga-se, ao do eslovaco Ján Kuciak, cujo homicídio (ainda em julgamento) gerou um clamor notório, alertando as consciências para a crescente degradação das condições de segurança dos jornalistas no país que mantém das mais severas penas por difamação em todo o espaço europeu. E, a propósito de um seu quase-homónimo nacional, todos temos ainda bem presente o chinfrim acintoso do famigerado “Marechal Twitto”, que exemplificou nitidamente o clima hostil na Eslovénia: palco habitual de assédio e ameaças a jornalistas, tanto por meios virtuais como no foro judicial – a que acresce uma elevada concentração económica e não imune a interferências políticas, segundo a mais recente edição do Relatório sobre o Estado de Direito. Contudo, em abono da brevidade, foquem-se antes os vizinhos fronteiriços dos beligerantes (e da Eslováquia, ensanduichada entre ambos): Polónia e Hungria.

O par de “suspeitos do costume” europeus evidencia um contraste significativo. Enquanto, na Polónia, sob a liderança do partido Lei e Justiça, se assiste ao envolvimento concertado de entidades públicas na compra de órgãos de informação, na Hungria, é a corte de oligarcas que gravita em torno do governo do Fidesz que assume esse papel, acentuado pela selectividade da publicidade estatal. Porém, a par de várias manobras intimidatórias, ambos se assemelham num aspecto curioso: a diversidade de meios privados não assegura um verdadeiro pluralismo, porque a publicidade estatal selectivamente dirigida desvirtua as regras de mercado e fomenta uma concorrência desleal (contrária ao dito level playing field).

Seja de forma encapotada ou ostensiva (da asfixia financeira à suspensão de licenças, da litigância abusiva às ameaças verbais ou à violência física), o panorama da liberdade informativa, na região, é pouco tranquilizador. E, a avaliar pela contínua depauperação económica da imprensa também no resto da Europa, talvez seja um exagero retórico dizer que os jornalistas, aqui, estão a leste do paraíso, mas já não o será dizer que, a leste, nada de novo.

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