Quando se aproxima o fecho da dita “janela de mercado de transferências”, por estes dias, os agentes desportivos agitam-se com o frenesim de um formigueiro. E, graças ao corrupio infrene de entradas e saídas, o adepto comum já está habituado a que a passagem dos jogadores pelo seu clube dure tanto como o típico governo da Primeira República (ou, pior ainda, nos casos extremos, tanto quanto o reinado do francês Luís XIX: vinte minutinhos). Mas esse universo dos “bastidores das transferências” já tem glosadores de sobra nos inúmeros programas televisivos, que aparentam saber mais sobre obscuros futebolistas sérvios, com apelidos impronunciáveis, do que eu sei sobre a minha própria vida. Por isso, vamos ao que interessa.

Epitáfios – que tal epitáfios? (Calma: isto – espero eu – já vai animar.) Num texto datado de 1740, o ensaísta britânico Samuel Johnson, examinando o epitáfio como se de um género literário se tratasse, alega que as inscrições tumulares são um registo que visa, pela escrita, tornar presente a pessoa ausente. Hoje, sucede algo parecido com as inscrições do nome dos ídolos nos equipamentos envergados pelos adeptos, que muitas vezes perduram para além da fugaz passagem dos jogadores pelos clubes. Por exemplo, quantos sportinguistas não se terão arrependido, recentemente, de ter gravado na sua camisola o nome de João Mário, o regressado filho pródigo que, findo o empréstimo ao Sporting, transitou directamente para o rival Benfica? Na verdade, se esse cruel revés não atingiu mais gente, foi porque, precisamente, o seu vínculo ao clube correspondia ao de um jogador emprestado; e porque se sabe que, tal como o diagnóstico de uma doença fatal, o empréstimo de jogadores está sujeito à condição de um prazo, havendo a consciência de que essa ligação será a crónica de uma despedida anunciada.

Porém, nem todas as experiências – mesmo transitórias – culminam num desfecho tão penoso como a de João Mário. De facto, não muito tempo depois de este atravessar a Segunda Circular, há exactamente um ano, chegava a Alvalade, também por empréstimo, um avançado espanhol rotulado de craque: Pablo Sarabia. Vítima da espantosa abundância de alternativas no plantel do multimilionário Paris Saint-Germain, Sarabia vinha em busca de uma oportunidade para jogar assiduamente, com os olhos postos na convocatória para o Mundial de selecções. Embora chegando já com a época em curso, rapidamente se afirmou como titular, até pela relação de complementaridade que se estabeleceu com os seus parceiros no tridente ofensivo da equipa. Ao contrário de Pedro Gonçalves, não era especialmente rápido nas desmarcações para as costas dos adversários, nem um repentista no drible e no remate; ao contrário de Paulinho, não tinha uma envergadura física que lhe permitisse aguentar o choque dos oponentes, segurando a bola nas disputas ou pressionando os defesas contrários. Não dispondo de nenhum desses atributos individuais, mas sendo o mais dotado dos três, Pablo Sarabia era um daqueles futebolistas cujo virtuosismo técnico sobressaía na forma como se articulava com o colectivo: fosse pela visão de jogo nos passes cirúrgicos, assistindo colegas; fosse pelo engenho na colocação do remate, a curta e média distâncias; fosse pela inteligência de movimentos e pelo acerto nas decisões. Jogador com bom carácter mas mau feitio, afável fora do relvado mas afirmativo dentro das quatro linhas (e o melhor imitador do som de elefantes), cedo caiu em graça junto das ciclotímicas bancadas leoninas.

Jornada a jornada, sentiu-se o crescendo de angústia pela iminência da partida, bem expressa no popular movimento #FicaPablo. Até que, fatalmente, chegou o jogo do adeus. Sem querer deslizar para o confessionalismo, ocorre-me o episódio sucedido, nesse dia, com uma pessoa minha conhecida (vamos chamar-lhe, por exemplo, “José Pedro”, para preservar a sua identidade), que não planeava ir assistir ao jogo, mas inesperadamente beneficiou, à última hora, da oferta de um bilhete suplementar. Com aquela sua propensão para tomar decisões erradas pelos motivos certos, esse “José Pedro” (nome fictício), que estava então a ler um livrito académico, respondeu distraidamente que «agora não dá muito jeito» e declinou o convite, sem pensar no que dizia – assim protagonizando o equivalente desportivo a faltar ao velório de um familiar porque se pretende arrumar a colecção de filatelia. Ora, ao contrário de, digamos, Gore Vidal ou Édith Piaf (que, famosamente, proclamaram não se arrepender de nada), esse – chamemos-lhe assim – “José Pedro” arrepende-se de muitas coisas; e, se o arrependimento matasse, teria caído redondo no chão, nessa mesma noite, ao ver o estádio levantar-se em uníssono, num aplauso de homenagem, no simbólico minuto 17. Mas o arrependimento não restitui o que já passou.

Até pode ser, como alegava o citado “Doutor Johnson”, que a escrita seja uma forma de evocação ou permanência da memória e que esta crónica cumpra esse papel, mas esse consolo é um fraco consolo: no desporto como na vida, efémeros por natureza, os momentos perdidos são irrecuperáveis. No entanto, há poucas actividades – como o desporto – em que só conte o presente, em que cada jornada seja uma oportunidade de redenção, em que cada época constitua um renovar de expectativas mais ou menos utópicas – e quem sabe se o reforço Francisco Trincão, que já herdou a camisola 17 de Pablo Sarabia (como numa passagem de testemunho), não sucede também ao saudoso esquerdino no coração dos adeptos?…

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