Quando olhamos para a primeira metade deste ano de Pandemia, de 2020, não podemos deixar de registar, para além do permanente bombardeamento noticioso sobre a doença, outros acontecimentos. E um deles é uma alteração na política externa da China.
Na realidade, o regime chinês foi, desde a vitória dos comunistas e de Mao Tse Tung, sobre Chiang Kai-Shek e o Kuomintang em 1949, mudando a sua aproximação não só aos vizinhos como às organizações internacionais.
A China de Mao, considerava-se um estado revolucionário, quer no plano interno quer no externo. No externo, até por que os ocidentais não lhe permitiam ter a representação do Estado Chinês em muitos organismos internacionais, a começar pelas Nações Unidas onde, por influência de Washington e dos dois “grandes” europeus, a representação da República da China continuava a caber a Taiwan.
A República Popular da China (RPC) foi, durante os seus primeiros anos de existência e até à destalinização iniciada por Kruschev no 20º Congresso, um fiel aliado da URSS. A partir daí, iniciou a polémica com Moscovo, sobre a autenticidade do “socialismo” reformista pós estalinista, e foi-se autonomizando. Invocou para isso, não apenas por razões ideológicas – os russos estavam a liberalizar e liquidar o comunismo e a “emburguesar” como por questões nacionais.
A esta ruptura seguiram-se na RPC, as experiências concentracionárias mais radicais que culminaram na famosa “Revolução Cultural” que, no Ocidente europeu e nos Estados-Unidos deslumbrou intelectuais e jovens estudantes apanhados pelo vírus maoísta. Hoje estão quase todos convertidos á democracia pluralista e aos seus encantos político-sociais, poucos permanecendo no solipsismo radical de então.
Com a morte de Mao, a ascensão discreta mas rápida de Deng Xiao-Ping, a liquidação do famigerado “Grupo dos 4”, alguma moderação e racionalidade entraram no regime chinês. Embora as estruturas base do Estado e do Regime não tivessem mudado – o Partido Único, o Estado Totalitário, a ideologia comunista mantiveram-se – mas o terror baixou de nível e, foram surgindo elementos de ponderação e razoabilidade no modelo económico. Elementos que, rapidamente, modificaram a economia e a sociedade chinesas, criando em três décadas uma forte classe média, baixando os níveis de controle e terror, e apontando para um modelo de atracção do investimento estrangeiro que iria transformar – sobretudo depois do fim da Guerra Fria – a China na “fábrica do mundo”.
Mas ao mesmo tempo, e elucidados pelo exemplo da URSS, onde a “liberalização” gorbacheviana levara à ruína o regime, Deng Xiao-Ping não hesitou em reprimir as pressões da rua e o levantamento dos estudantes e outros dissidentes em Tiananmen.
Deste modo os dirigentes da RPC optaram por um modelo político-económico em que combinaram politicamente o nacionalismo monopartidário com uma linha económica de abertura capitalista controlada, e em que claramente, a política comandava a economia. Mas em três décadas, conseguiram do ponto de vista económico-social resultados importantes: acabaram com as carestias, fomes e razias do período maoísta; criaram uma classe média que rapidamente abrangeu, uns 25% da população; transformaram o país numa “fábrica do mundo” para onde migraram grande número de sociedades e indústrias de trabalho intensivo; e desde a entrada para a Organização Mundial do Comércio (OMC), que progressivamente, a RPC ocupou – à custa dos Estados-Unidos e da Europa – um espaço maior no Comércio Mundial.
Esta foi a política dos sucessores de Deng Xiao-Ping, Hu Yaobang, Jiang Zemin, Hu Jintao. Uma concentração nas questões do desenvolvimento económico e social, uma abertura comercialmente pacífica a novos mercados em todos os continentes, pelo comércio e pela aquisição e investimentos em empresas com dimensão estratégica e generosa concessão de crédito quer Estado a Estado, quer através dos seus Bancos.
Por este tempo, e graças à liberalização económico-financeira do sistema e às oportunidades para a formação de grandes grupos público-privados e também grandes negócios, surgiram oportunidades e casos de grande corrupção, escândalos que começam a agitar o regime e a ter repercussão exterior.
É nesta altura, nos primeiros anos do século XXI que se dá a ascensão de um jovem quadro, Xi Jinping, filho de um importante dirigente do Partido Comunista Chinês (PCC) Xi Zhongxun; Xi Zhongxun, um alto quadro do partido esteve preso durante as purgas maoístas, sendo reabilitado no pós-maoísmo em 1978.
Xi Jinping assumiu a liderança em 2012, foi-se afirmando como um primos inter pares, na toda-poderosa Comissão Executiva do PCC e a partir de 2016, destacou-se dos seus companheiros do núcleo restrito.
A Covid-19, acabou por colocar a RPC no centro do mundo e da política mundial. O grau de responsabilidades atribuídas a Pequim no Ocidente, varia de Estado para Estado e vão desde a linha ultra que considera haver um Master Plan chinês que arruinou as economias euro-americanas e alterou radicalmente a Geopolítica dos poderes mundiais, às atitudes mais contemporizadoras, que vêem um descuido censurável mas inocente, quer seja num laboratório, quer nos promíscuos mercados de espécies exóticas ou comuns.
Agora, no meio de um conflito verbal e comercial com os Estados-Unidos, perante a hostilidade de parte dos media europeus, quando quer Trump, quer os seus rivais democráticos todos se têm pronunciado em termos de denunciar a ofensiva comercial chinesa, o domínio crescente de espaços e concessões em África e na América Latina, a aquisição de empresas estratégicas na Europa e nos Estados-Unidos, o governo de Pequim parece interessado em alargar o círculo de conflitos.
Com efeito, tendo a hostilidade de muitos dos seus vizinhos asiáticos – que o temem – como o Japão, a Coreia do Sul, o Vietnam, Taiwan, as Filipinas; tendo uma revolta em ebulição em Hong-Kong, tendo os conflitos de limites nas águas do mar da China, vai, neste quadro, emboscar uma patrulha do Exército indiano nos Himalaias, reabrindo um conflito em banho maria, há algumas décadas.
De certo modo, Pequim parece querer multiplicar os inimigos, desde a Austrália à India, para além dos Estados-Unidos e dos seus vizinhos asiáticos. É certo que, graças às aquisições muito significativas na Europa Ocidental, criou em muitos países um lobby natural de políticos e empresários que a defendem; em África fez o mesmo, graças à dívida como em importantes países da América Latina.
Também sem dúvida, que o isolacionismo da administração Trump, ou a percepção desse isolacionismo, pode ter tentado Pequim a uma maior agressividade em relação a questões pendentes e rivalidades fronteiriças – Hong Kong, Taiwan, Mar do Sul da China, Índia. Como a algumas reacções intempestivas a acusações políticas e mediáticas na Europa e nos Estados-Unidos. Mas também é certo que se as camadas protectoras dos investimentos e aquisições de posições estratégicas em bancos, empresas energéticas e de serviços e a influência de personalidades importantes pode proteger – vê-se isso na linguagem cuidada com que as diplomacias ocidentais referem tais situações — também não deixa de ser verdade que a política de Pequim, nos últimos meses, passou de uma linha de soft power económico-financeiro e uma marcha discreta de ocupação de lugares-chave em organizações multilaterais ou de troca de dívida por assets estratégicos (aquisição e gestão de portos e concessões territoriais em África) para uma afirmação mais directa e clara – e às vezes sem uma razão muito concreta, como no caso do conflito da Índia.
É um comportamento estranho de uma potência que, até agora, tem primado pelo realismo e pela auto-contenção.