Ontem, esteve um dia bonito. Hoje, as nuvens decidiram cobrir o céu, mas não faz mal. O céu é o mesmo. O mundo é o mesmo. O céu nublado de hoje é tão bonito como o céu cheio de azul de ontem. No entanto, os dois céus arranjaram tempo e espaço para serem diferentes e não podia ser de outra forma, visto que representam duas realidades distintas.

Ao longo da tarde de ontem, a luz entrou de todas as maneiras possíveis pela casa adentro. No momento em que identifiquei o primeiro feixe de luz solar, intruso bem-vindo do lar, pensei no arquiteto (para mim desconhecido) que idealizou esta parede para a qual olho, esta sala, esta casa, este prédio. Por não gostar de ficar a dever agradecimentos a ninguém, aproveito esta frase para agradecer-lhe o facto de ter projetado esta casa e, em parte, todos os momentos que ela me proporcionou ao longo da vida.

De arquitetura não percebo nada. Guardo em mim apenas um desejo antigo e infantil de ser arquiteto; a vida quis que eu seguisse um caminho diferente. Não sei fazer plantas, nem idealizar divisões de casa, ou desenhar varandas. Apenas sei desenhar palavras, como estas. Tornei-me, no máximo, num arquiteto de palavras, que acredita que as pessoas também são feitas de casas. Para além da carne e do sangue, dos ossos e dos sentidos, as pessoas também têm entradas, pátios, portas e ombreiras de portas, paredes, divisões, quartos, chão, e tetos dentro de si. É nas casas que temos dentro de nós que guardamos as nossas memórias, as nossas crenças, os nossos amores e sonhos, e arrependimentos também.

Quando invade as nossas casas, a luz entra sempre sem aviso. É por isso, claro, que é uma invasora. Contudo, a luz só entra se nós não formos precavidos. Ela é uma força muito poderosa, mas facilmente esbarra nos estores e nas portadas fechadas das casas, que não a querem, e que a proíbem de entrar. Tento nunca ter os estores para baixo – somente quando a luz está muito intensa, e é capaz de, sem intenção e proporção, ferir o equilíbrio dos meus olhos (e em dias de muito calor também, de modo a não sobreaquecer a casa).

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Apercebi-me da presença da luz na sala no instante em que me levantei da poltrona para levar o café, já tomado, à cozinha. A distância entre as divisões é curta. A meio do caminho, fui apanhado desprevenido, completamente desarmado: vi um feixe de luz a atravessar a sala inteira, para depois pintar de um tom mais claro um canto de uma das paredes da sala, a que segura o quadro da guitarra sem guitarrista. Parei. Não sei ao certo durante quanto tempo fiquei parado, com o pires na mão. E fiquei a contemplar aquela cena, a olhar para a parede que, subitamente, tinha ganho outra cor.

Às vezes, acredito que temos visões do Céu na Terra. São episódios sem tempo. É difícil cronometrá-los, pois duram apenas o que têm para durar. São momentos que, sendo captados pelo interior dos nossos olhos, são eternos. São notas musicais que não têm nem começo, nem fim – apenas uma existência profunda. No momento em que segurava a chávena na mão, sabia que a casa estava vazia, porém, senti precisamente o contrário. De repente, a casa tinha ficado cheia. Cheia de luz e cheia de esperança.

É cada vez mais difícil encontrar esperança. Nos últimos tempos, essa dificuldade tem-se intensificado. Não digo que a esperança seja a última a morrer, pois não acredito nisso. A esperança não é a última a morrer, porque a esperança não morre. A esperança é eterna, e existe apenas nesse sentido. Ela forma uma substância mágica cada vez mais rara, porém. E isso não há como negar – sobretudo se tivermos em conta o atual estado do mundo que, depois de ter tombado, continua no chão. Ele tenta levantar-se, mas não consegue. Usa todos os seus membros para se equilibrar, faz força com o corpo todo, mas sem sucesso. Ainda por cima, a rua está vazia (e as pessoas em casa), e, por isso, não passa ninguém. Mas o mundo vai-se levantar, mais cedo ou mais tarde. Estou convencido de que se irá reerguer no momento em que conseguir (per)seguir um dos muitos feixes de luz que, vindos do Céu, chegam à Terra, e até nós. Até todos nós. Até todas as casas. E até a esta sala que, ontem e em tantos outros dias, foi a sala mais bonita do mundo, a sala com mais luz, a sala com mais esperança de todos os tempos. O melhor tipo de felicidade é a momentânea, a que chega às nossas vidas sem dizer. É por isso que é a mais pura e real, a que está mais próxima de nós e dos nossos sentidos. É um tipo de felicidade que não nos mente, nem ilude. É verdadeira. E, geralmente, chega até nós sob a forma de raios solares e feixes de luz, e sempre sem aviso.

Por alguma razão, tenho as portadas de casa abertas. Nunca se sabe quando é que a esperança vem ao nosso encontro.