“A impressão que tenho é que os meus pais não me conhecem. Não sabem quantos namorados eu tive. Nem das alturas em que, há anos, lhes falsifiquei a assinatura em testes com negativas. Ou quantas vezes saí de casa, à noite, depois de estarem a dormir. Eles não têm uma ideia muito clara acerca daquilo que eu faço. Mal conhecem alguns dos meus amigos. Nem sempre estão a par dos meus maiores sonhos. Ou participam, sequer, na construção dos meus projectos.”
Este não é o discurso de uma única pessoa. Mas faz-se de muitos fragmentos com desabafos de pessoas diversas. De trinta e de quarenta anos.
É claro que nem sempre os pais estão distraídos. É verdade que, entre o que observam e intuem e tudo o que dizem a um filho, sobretudo à medida que ele cresce, parece instalar-se um propósito de reserva que faz com que os pais falem pouco de tudo aquilo que pensam acerca dele. Do que gostam como do que admiram. Do que não apreciam como daquilo que os desgosta. Com o tempo, o medo pelos melindres que surjam parece ir sobressaindo sobre a verdade e a espontaneidade dos gestos que se têm. E pais e filhos, dantes indispensáveis uns para os outros, passam a coabitar num silêncio onde convivem muito pouco com tudo aquilo que têm “lá dentro”.
É claro, também, que não seria de supor que os pais, para merecerem ser pais, tivessem de estar, minuciosamente, a par de tudo aquilo que se passa com um filho. Mas é, igualmente, verdade, que, à media que as páginas em branco se sucedem na relação entre os pais e os filhos, os filhos sentem que deixam de ser (tão) filhos. E as relações entre eles envelhecem. E passam a alimentar-se mais dos créditos que se guardam nas histórias que dos episódios que tecem no aqui e no agora da relação que têm.
Também os filhos sabem de menos acerca daquilo que se passa com os pais. Não estão a par das suas histórias mais reveladoras. Dos episódios fundamentais da sua infância. Das traquitanas que ficaram do seu crescimento. Daquilo que eles, delicadamente, sentem. Dos sonhos que têm. Ou de tudo o que fazem. Como desconhecem, para mais, muito do essencial dos seus avós. Por isso mesmo, é natural que os pais, com o tempo, sintam que deixam de ser tão pais. E que, tal com acontece com os filhos, que a sua importância na vida deles pareça tornar-se, aparentemente, residual. Sobretudo quando ela se mede pelos pequenos gestos com que lhes falham. E se resume a datas e a convenções e a horários mais ou menos marcados. E muito pouco a conversas sobre o tudo e sobre o nada. Ou a uma certa indisciplina com as horas, como só as relações preciosas são capazes de ter.
Os pais e os filhos falam pouco de si. Perguntam de menos uns sobre os outros. Exageram na forma como permanecem na expectativa. “Perdem” pouco tempo uns com os outros à medida que o tempo passa. Afastam-se; devagarinho. E enredam-se em pequenos amuos, esperando que o outro tenha as iniciativas que quem espera também pode ter. A relação entre os pais e os filhos envelhece! E, muito pior que isso, quando é assim, morre. Aos bocadinhos. Quando uns e outros aceitam, passivamente, ir-se desconhecendo. Mutuamente. E se vivem, em silêncio. Ou, unicamente, pejam aquilo que dizem dos pequenos desabafos esdrúxulos com que os mal-entendidos se alimentam no silêncio. Mas que ninguém entende.
Porque é que fazemos muito mais de pequeninos do que devia ser e ficamos à espera que quem nos ama lute por nós? Ou fale por nós? Ou nos desfaça os nós que os ressentimentos acabam sempre por tecer?…
Chegados aqui, deixem-me que volte convosco à língua materna. Disse-vos, não há muito tempo, que a língua materna não corresponde à língua da mãe que um bebé aprende e aprofunda. E que será, muito mais, uma descoberta recíproca daquela mãe e daquele bebé naquele momento dos dois. Mas, hoje, gostava de ir mais longe. E tomar a língua materna como a língua que pré-existe a todas as línguas do mundo. E que persiste, para sempre, transversal a todas elas. Ela é, na verdade, uma língua que se constrói à margem da necessidade das palavras. Fala-se com os olhos. De pequenas entoações. Ou com gestos. Que, de tão subtis, são quase invisíveis para quem não os leia com um coração sem preconceitos. Sempre na esperança que haja quem os interprete. E, de forma delicada, lhes corresponda. E lhes responda. E os abra, incansavelmente, para a claridade.
O silêncio que separa os pais e os filhos não se costura com todas as coisas que eles não sabem uns dos outros. Aquilo que faz com que os pais e os filhos se afastem e deixem de se sentir indispensáveis uns para os outros — e alimentem a ideia que a relação que têm vai envelhecendo de desconhecimento em desconhecimento — tem, sobretudo, a ver com a forma como ambos falam numa segunda língua e esperem ser entendidos, correspondidos e interpretados, como se falassem à margem da necessidade das palavras.
Por mais que os filhos cresçam e os pais não deixem de ser pais e envelheçam, a língua materna trespassa as palavras dos pais e dos filhos. Para sempre! Mesmo quando falam por palavras, uns e outros anseiam por um coração sem preconceitos que os entenda à margem da necessidade das palavras.