“Se até ao final de Abril os idosos estiverem vacinados, venceremos a batalha contra a Covid-19.” Esta frase da semana da revista Visão, proferida por Henrique Oliveira, matemático do Instituto Superior Técnico*, toca num ponto fundamental. Apesar da letalidade ser na mesma não desprezável nos outros grupos etários, estamos a falar de uma doença que numa esmagadora maioria mata idosos, especialmente acima dos 80 anos, como é bem sabido aliás há já muitos meses. Parece, portanto, lógico, que essa tem mesmo de ser a prioridade das prioridades numa vacinação expedita da população. E depois – dando margem a grupos específicos, como os profissionais de saúde na linha da frente, como é óbvio -, talvez fosse relevante considerar, por exemplo, os do grupo 75-79 anos, depois 70-74 anos, etc., metodologia que, embora leigo, me pareceria adequada, de acordo com dados recentes de percentagem de vacinados, por um lado, e de alta letalidade persistente nesses grupos etários, por outro. Voltando à frase da semana, a partir da altura em que se consiga resolver o problema da letalidade na terceira idade, a sociedade pode, de facto, voltar a uma operação praticamente normal. Há boas indicações nesse sentido a vir de Israel, que é aliás um dos países do pelotão da frente no que toca à vacinação. Já estamos a ver a luz ao fundo do túnel. Isso são boas notícias.

Entretanto, é preciso avaliar o que é que se conseguiu com o confinamento, com o fecho das escolas e com todas as demais restrições. Com os elevados custos que bem conhecemos, o que se conseguiu, primariamente, foi, objectivamente, salvar a vida de milhares de Portugueses. Tão simples quanto isso. Ora, penso que este facto não tem sido suficientemente realçado, até para valorizar o esforço efectuado por todos. Já nem falo do colapso inevitável do sistema de saúde numa situação de crescimento descontrolado dos contágios, com consequências societais imprevisíveis, mesmo ao nível do perigo dum caos sanitário (e não só) generalizado. A mera manutenção de um número médio de 300-350 mortos por dia levaria a um total de 10000 mortos por mês, pelo menos. Número que é realmente aterrador, mesmo sabendo que a mortalidade normal seria de cerca de 9350 pessoas por mês (dados de 2019). Ou seja, o excesso de mortalidade mensal apenas devido ao Covid poderia ser grosseiramente estimado em cerca 5000 pessoas**, no mínimo, o que ao ser analisado mesmo que friamente, é assustador. Aliás, esse tipo de contabilidade faz-se: as seguradoras têm actuários que fazem tais cálculos e a Segurança Social terá mesmo que actualizar as suas tabelas. Os modelos epidemiológicos corridos para cenários de não confinamento podem também ser úteis para dar uma estimativa desse número de “salvamentos”.

Ora, era esse esforço que seria útil explicar melhor às pessoas. Que o confinamento, muito provavelmente, salvou a vizinha Alzira que cuida durante o dia dos seus netos, e também o sr. Américo, que vemos todos os dias de máscara a passear o seu cãozinho, bem como dezenas de milhares de Portugueses, na maioria idosos. Ou seja, neste ano salvou-se a vida a umas 50 mil-100 mil pessoas, fazendo uma rápida, e certamente tosca, extrapolação para o cenário em que não se tivesse feito nada. É verdade, a grande maioria são pessoas que em média irão morrer 5-10 anos mais tarde. Se morressem mais cedo, e custa estar meramente a escrever isto, limpavam-se mais rapidamente os ditos cadernos de utentes da Segurança Social. Mas estaríamos preparados mentalmente para tomar essa decisão de “deixar arder”?

Existiu choque e comoção nacional (justificada!) com o facto de 114 pessoas terem falecido nos incêndios em 2017. Tivemos campanhas para que a jovem Constança que tem fibrose quística e os demais pacientes recebessem o respectivo medicamento, e bem!, e o mesmo já tinha sucedido relativamente à hepatite C. Quando há uma derrocada faz-se tudo para salvar aquela última pessoa. Todos estes casos envolvem indivíduos com nome e rosto. No caso da pandemia, podemos não saber quem seriam as próximas vítimas, mas a questão é a mesma: e agora, deixávamos os idosos morrer? (e já agora, também inúmeros não idosos, pela lei dos grandes números, com tantos casos de infecção em propagação exponencial). Com certeza que não. Isso corporiza um valor que prezamos, que é o da solidariedade. E mesmo o démodé e incompreendido amor ao próximo é, na prática, isso mesmo, fazer tudo o que está razoavelmente ao nosso alcance para salvar a sua vida. Foi isso que fizemos em conjunto e devemos estar orgulhosos disso.

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Certamente que existem também outros valores que têm que ser ponderados. Há que aceitar em concreto, como os profissionais de saúde abnegada e objectivamente fazem, a verdade literalmente lapalissiana (evocando esse bravo militar que “antes de morrer ainda vivia”), que as pessoas acabam sempre por morrer. E já tínhamos sido avisados que, mais cedo ou mais tarde, a sociedade humana seria confrontada com uma pandemia. Assim como sabemos que o cancro existe, e a malária. Para contrariar o pessimismo que esses factos poderiam gerar, aliás, é preciso não esquecer outra frase lapalissiana, tão famosa como incompreendida, de Lili Caneças: estar vivo é o contrário de estar morto***. Consequentemente (e sei que parece frase de antigos concursos de beleza), a sociedade tem mesmo que se mobilizar para dar condições de vida às pessoas, especialmente aquelas que viram os seus meios de vida arrasados por esta pandemia, tendo em vista, por exemplo, o tsunami financeiro que pode chegar após o fim das moratórias.

Claro que nunca vamos saber em concreto quem salvámos (ao passo que se sabe dolorosamente quem são os muitos que não conseguimos salvar), mas independentemente dos custos brutais em termos económico-financeiros, de lacunas graves no apoio a outras patologias e dos erros que foram cometidos, era bom perceber que esse ganho invisível em termos de vidas humanas é real. E valorizar isso, que a vida humana é um valor fundamental e sem preço. Até para que a mobilização na reconstrução das milhares e milhares de vidas que ficaram arruinadas por esta pandemia tenha o mesmo empenho de desígnio colectivo, o que não é óbvio, visto que é mais fácil parar que fazer. Mas essa motivação e empenho é fundamental para dar um valor mais duradouro ao esforço realizado, para não o desperdiçar. Perceber sem lamechices ou moralismos que andámos todos a trabalhar longos meses para salvar a vida de dezenas de milhares de concidadãos pode, assim, gerar uma convicção e um sentimento (que obviamente não pode nem deve ser imposto) de que valeu mesmo a pena todo este esforço, esforço esse que agora tem que ter continuidade noutras vertentes. Repito a ideia que “buscámos e salvámos” a D. Elvira que ainda tem muito amor a dar aos netos. E o Professor Albino que ainda tem muita sabedoria a transmitir a alunos e colegas. E agora eles e os filhos e netos exigem que se redobrem os esforços para aquilo que vem a seguir.

Não tenho visto muitas pessoas a discutir esta vertente do assunto. Claro que isto é uma guerra contra este inimigo microscópico (os marcianos de A Guerra dos Mundos que o digam) e em Portugal até contamos com um militar ao leme, o Vice-Almirante Gouveia e Melo. Mas do ponto de vista das pessoas, considero que esta pandemia deve ser vista mais como um cataclismo brutal que nos atingiu e que tornou necessária uma resposta extrema de toda a sociedade para salvar vidas. Ou seja, que o que andámos a fazer foi, no fundo, uma megaoperação de busca e salvamento.

E que agora esse esforço não pode parar, só que, aos poucos, passando para outra dimensão. A seguir ao evitar da morte, há que restaurar as vidas das pessoas. Não querendo entrar no tema da Bazuca, parece óbvia a necessidade de uma aposta nas gerações mais novas, dando-lhes condições para que permaneçam no país, bem como na inovação, na ciência e na tecnologia como motores do desenvolvimento. Em concreto. Frases batidas, mas não menos importantes, especialmente agora. Apesar do cansaço e sequelas e receio do que nos espera, urge agora ter o discernimento e a determinação para encetar a reconstrução das nossas vidas.

* Henrique Oliveira faz parte do grupo de trabalho de acompanhamento da Pandemia do Instituto Superior Técnico, coordenado pelo seu Presidente, Rogério Colaço, e do qual fazem também parte Ana Serro, João Seixas e Pedro Amaral.

** Continuando em modo de estimativas de Fermi: se neste caso se admitir que uma porção dos mortos por Covid acabaria sempre por falecer a curto prazo de outras causas, sendo que essa população é ainda mais susceptível aos efeitos do coronavírus, estou a assumir, de forma que considero conservadora, que apenas 50% dos mortos Covid constituem um excesso de mortalidade, número que, obviamente, é objecto de análise por parte dos especialistas e que aqui é meramente usado para efeito de argumento. Claro que se tem que analisar as demais causas de morte, por efeito de arrastamento (receio de recorrer aos serviços de saúde, adiamento de tratamentos e cirurgias, etc): em 2020 a Covid-19 corresponde “apenas” a cerca de 60% do excesso de mortalidade, por exemplo. Entretanto, para o final de Fevereiro de 2021, o INSA apontou que o excesso de mortalidade tinha cessado. Não sei se há relação causal com o confinamento, mas se não existir será uma notável coincidência.

*** Ver, por exemplo, a entrevista a Luís Filipe Borges. Mesmo num contexto mais lato, a frase tão vilipendiada pode na mesma fazer sentido, visto que para entender um conceito pode ser útil considerar o seu antónimo.