Depois das últimas eleições de Março, uma das dúvidas que ficara era saber se o Chega, que elegeu 50 deputados, estaria à altura deste resultado e seria capaz de o consolidar. Para isso, dependeria apenas de si próprio, porque, na verdade, ninguém o desafiou ao que quer que se fosse.

A primeira prova foi rápida: a eleição do Presidente da Assembleia da República mostrou absoluta falta de vontade em jogar o jogo democrático com decência e sentido de Estado. Podia ter corrigido a rota, nos meses seguintes, mas escolheu não o fazer. As intervenções do líder, que marcam a pauta do partido, primam pelo exagero, pelo estrambólico, pelo desconchavo, pela gritaria e, quando necessário, pela mentira. Eu sei que a forma como o regime democrático se tem desprestigiado foi fazendo crescer um magote de pessoas ciosas de quem “parta a loiça”, “não tenha medo” e “as diga todas”. Mas até esses cidadãos, creio, começam a estar fartos do filme “Oficial e Trauliteiro”, em que o estilo berreiro- e-inconsequência consome meses, semanas e dias.

Ao votar demasiadas vezes significativas ao lado do PS – não escondendo que o faz para incomodar PSD e CDS – e ao escolher como inimigo principal o governo AD, o Chega tem conseguido a proeza de ter transformado em quase completa inutilidade o crédito de 50 deputados que o eleitorado lhe deu em 10 de Março. Nem é preciso ver as sondagens. Sente-se no ar. Cheira-se.

Também não é por causa de qualquer “cordão sanitário”. Quem se cerca a si próprio com cordão grosso é o líder do Chega e a sua actuação política em constante “enormismo”, extravagantíssimo método e sistemático desconcerto. Quem consegue acompanhar tamanha alucinação? Creio que ninguém – a começar por muitos membros da sua bancada parlamentar, quanto mais os parceiros que desejasse. Eu creio, aliás, que André Ventura não deseja propriamente ter parceiros. Deseja suplantar toda a gente e submetê-los. Ele quer ser sempre o número um, o único número um: é este o seu cordão sanitário.

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A abordagem ao Orçamento de Estado pelo deputado André Ventura percorreu, desde o primeiro dia, um processo político completamente errático, sempre em montanha-russa. Nunca pode esquecer-se que arrancou com aquela ideia do referendo sobre a imigração. E, se a ideia em si já é de grande atrevimento, cruzar o referendo com o OE e a votação deste foi bater o record mundial do absurdo e da incongruência. A política é uma brincadeira, não há assuntos de Estado. Nunca se vira tal coisa em qualquer país.

Com o chão a fugir-lhe debaixo dos pés depois de tanta pirueta, o líder do Chega recorreu à mentira, para tentar ainda subir a parada. E inventou aquela mentira de o primeiro-ministro lhe ter proposto um acordo e o convidara para o governo. Montenegro desmentiu-o de forma pronta e peremptória. Aqui, André Ventura tem pouca sorte. Há alguns grandes mentirosos na vida portuguesa. Mas ele não é desses: quando mente, percebe-se logo, vê-se bem que está a mentir e até se percebe porquê e para quê. Por isso, a mentira não pegou, nem pega. Voltemos ao “cordão sanitário”: quem, depois disto, quererá conversa com André Ventura?

Valeu-lhe, porém, o socorro oportuno do seu partenaire de legislatura, o seu fiel compagnon de route: Pedro Nuno Santos. Foi o líder socialista, talvez também em desespero, que saiu a prestar assistência a Ventura, colocando-o ao mesmo nível de Montenegro: “Aquilo a que temos assistido nos últimos dias é preocupante, digo mais, é uma vergonha para a nossa democracia, com dois líderes partidários a acusarem-se mutuamente na praça pública de mentira.” E, logo a seguir: “Não sabemos quem mente, não vamos dirimir essa disputa.” Como já vimos tantas vezes, o Chega dá jeito a esta liderança do PS.  Não o quer perder. E, como a mentira é contagiosa, eis que se pegou a Pedro Nuno Santos.

Ventura mente ao dizer que Montenegro lhe propôs um acordo ou que o fez mesmo. Pedro Nuno mente ao dizer que tem dúvidas sobre se esse acordo existiu, ou não. Todos vemos que ambos estão a mentir e a alimentar um mero jogo de palavras, feitas puro palavreado. Mas ambos continuarão a alimentar um assunto que não existe. Não haverá adultos na sala do Chega e do PS? Seria boa ideia acabar com criancices, para irmos às coisas sérias.

É mau que, nesta legislatura, o Chega não conseguisse ascender à maturidade própria de um partido parlamentar com 50 deputados. É ainda pior que esta liderança do PS esteja a conduzir um partido histórico para o nível de irresponsabilidade do Chega.