Já escrevi um livro sobre o casamento. Na altura tinha onze anos de experiência. Há duas semanas comemorei vinte. Eu e a Rute casámos há duas décadas, no dia 20 de Julho de 2002, na Igreja Baptista de Queluz. Temos quatro filhos. Com a mania que tenho de querer escrever coisas supostamente novas sobre os assuntos mais antigos, escreveria hoje um livro diferente do “Felizes Para Sempre — e outros equívocos acerca do casamento” (entretanto esgotado na sua pequena edição). Não negaria nada do que afirmei há nove anos, mas provavelmente colocaria ênfases noutros lugares. O que é o casamento também se não a arte de irmos enfatizando coisas diferentes permanecendo na mesma união?
Parte do meu trabalho como pastor é vender casamentos. Quando digo vender casamentos não estou a falar em ganhar dinheiro com eles, até porque nunca me aconteceu. Digo vender no sentido de promover mesmo, encorajar pessoas a casar e a ficar casadas. Uma cerimónia de casamento é um encanto e não tanto por ser amorosa aos nossos olhos mas mais por se tratar de uma espécie de encantamento que se pratica. Quando as pessoas fazem os votos matrimoniais praticam um tipo de magia da boa. Talvez por isso os casamentos que mais aprecio são os que se deixam de romantismos pastosos e partem sem medo para o pó e para a lama que se pisam quando fazemos grandes promessas sem qualquer experiência prévia no assunto—é aí que a verdadeira fé é precisa.
Contra os casamentos modernos tenho a pieguice, o auto-comprazimento e a manha adquirida numa das operações mais pagãs que o mundo já viu chamado namoro. Casar namorados é um castigo mas casar noivos é outra história. Namorados contratam serviços; noivos contraem esperanças. O namoro é de tal modo uma imposição de caprichos pessoais que tiranizou tudo a ponto de substituir o casamento. Somos hoje um mundo de namorados eternos, uma campânula de adolescências impostas ao ponto da senilidade. Grande parte dos divórcios são namoros que teimaram não se tornar casamentos, ainda que tenham assinado os papéis. É muito triste que um dos valores que mais facilmente delegamos aos nossos filhos seja esta desgraça chamada namoro.
O namorado é uma pessoa feliz pelo que vive, o que contradiz completamente o que o casamento é. O casamento é o oposto de uma tentativa ansiosa de se guardar a felicidade que já se alcançou. É em boa parte o facto de as pessoas desesperarem por preservar a felicidade que tinham antes dos seus casamentos que explica que eles tão facilmente acabem. O entendimento cristão do casamento não é o de se viver feliz a todo o custo, mas precisamente o oposto: interessa aprender a saber morrer nele para que outras coisas possam nascer, além das nossas certezas prematuras de felicidade. Quem casar para se manter feliz, outras felicidades maiores do que o casamento rapidamente encontrará.
A Bíblia tem um modo único de expor isto logo no seu iniciozinho, nos dois primeiros capítulos do livro do Génesis. Génesis 2 dá-nos um plano apertado daquilo que Génesis 1 deu panorâmico. Agora vemos em detalhe a criação da mulher, que acontece depois da do homem. E descobrimos que a vida do homem pré-mulher fazia parte do paraíso mas o paraíso não era tão paraíso assim. Depois de tanto “é bom” que Deus tinha dito ao criar o Universo, lemos o primeiro “não é bom”: “não é bom que o homem esteja só”. A reacção de Adão à ideia de Deus criar Eva é o primeiro poema do mundo, dizem muitos que estudam a Bíblia. “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada”. Tinha sido bom ao homem dar nomes aos animais, mas quando dá nome à mulher o paraíso tornou-se ainda mais paraíso. Para todos que Deus chama ao casamento, estar casado significa que o que Deus faz é ainda mais usufruído por nós.
O casamento não é manteres o paraíso que descobriste antes dele, no suposto romance incrível que viveste; o casamento é um paraíso muito melhor a surgir através de a tua vida ser radicalmente mudada pela chegada de alguém diferente de ti em tudo. A Rute não é essencial para mim porque me fazia tão feliz namorando comigo que precisávamos de casar; a Rute é essencial para mim porque encarna a inadequação das minhas presunções precoces de paraíso. Do mesmo modo que Adão foi re-criado por Deus lhe fazer Eva da costela, a Rute abençoadamente impediu que o Tiago de 2002 continuasse. A ambição espiritual do casamento para nós é total porque casar significa uma transformação profunda de quem somos.
Um casamento que parte do princípio que o noivo e a noiva farão tudo para continuarem quem eram antes dele tem um nome simples: divórcio. Quando o marido quer permanecer o mesmo e quando a mulher quer permanecer a mesma, a separação é o desfecho natural. No relato bíblico, Deus não nos cria para sobrevivermos ao casamento, mas para morrermos nele e nascermos de novo—o esquema habitual do cristianismo. Quando permanecemos casados damos por nós num caminho que se assemelha intencionalmente ao de Cristo, no seu trajecto para o calvário. E, do mesmo modo que a cruz não é o ponto final do cristão, o casamento implica uma ressurreição constante. Não é por acaso que a fé cristã depende da imagem do casamento entre Cristo e a Igreja, a comunidade das pessoas atingidas pelo seu amor.
É verdade que a Rute foi minha namorada. Era uma bela namorada, devo admitir. Mas isso pouca ou nenhuma importância teve ou tem hoje. A Rute é a minha mulher há duas décadas, a pessoa que mais me tem matado. Ainda não sou grande coisa e ela, melhor do que qualquer outra pessoa, sabe. Mas hoje, muito mais do que em 2002, sei que dela tem dependido toda a abundante vida nova que Deus me tem dado a graça de conhecer.