Hoje, 8 de Janeiro de 2023, volto a dar Aconselhamento Familiar. Aconselhamento Familiar é o nome que na Igreja da Lapa damos ao tempo em que os casais reflectem sobre como viver o casamento de Bíblia aberta. É uma prática que a pandemia interrompeu mas que finalmente retomamos. Eu e a Ana Rute, a minha mulher, damos o melhor do que somos, sabemos e sentimos a toda a Igreja, conscientes de que não há nada tão sensacional e sensível como ser uma família.

Para quem, como eu, é entrado nos seus quarenta anos, é bem provável que tenha crescido com filmes, livros e discos que olhavam para a família com suspeita. Seriam os valores da família uma das grandes causas de hipocrisia social e amordaçamento das almas mais autênticas, feitas para muito mais do que votos matrimoniais ou outros princípios que seriam mais burgueses do que sinceros. Resumindo muito, a crítica era que a família era uma fraude.

Curiosamente, vieram tempos que, ao invés de obliterar a família, quiseram alargá-la. Hoje mais do que sentirmos a lâmina afiada da crítica aos valores da família, vemo-los esticados potencialmente ao absurdo, assegurando-nos que a família é do tamanho da nossa imaginação. Logo, para mentes mais fechadas como a minha, defender a família de pouco servirá se não esclarecermos de que tipo de família estamos a falar. Tendo em conta a minha obsessão por medir o mundo a partir da palavra divina que considero a Bíblia ser, os conselhos familiares que tenho são os que nela encontro.

Não existe nenhuma parte das Escrituras que funcione propriamente como terapia para casais. Apesar de também ser possível dizer o contrário: que parte das Escrituras é que, em último grau, não pode ser terapia para casais? Se nos lembrarmos que os cristãos acreditam que a melhor amizade que Deus tem com as pessoas vem em forma de uma metáfora matrimonial, fica praticamente tudo dito. Não é por acaso que o Apocalipse termina de um modo razoavelmente erótico: “O Espírito e a noiva [a figura da Igreja] dizem: Vem!” (Apocalipse 22:17). O tom final da revelação cristã é: alguém despache este casamento que os noivos têm coisas para fazer.

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Já tenho umas décadas de experiência de falar sobre assuntos que geram polémica entre quem tem fé e quem não tem. Poucos há como o casamento. O casamento é dos assuntos mais explosivos que existem. Big bangs dão-se com casamentos, guerras e pazes começam com casamentos, impérios nascem e caem com casamentos, e por aí fora. Sim, o casamento é uma instituição estabilizadora (como os mais conservadores como eu gostam de notar). Mas o casamento também é a suprema desestabilização de qualquer coisa. Quase morremos até casarmos e todos ajuizadamente vamos morrendo dentro dele.

Se parte deste texto se constrói a partir do Aconselhamento Familiar que hoje é retomado na Igreja da Lapa, outra parte vem da impressão que o último livro da Djaimilia Pereira de Almeida me provocou, o “Ferry”. Já antes me aconteceu ao lê-la: fica uma beleza doída, funda, como que meio a furar-me por dentro. Sinto que li algo especial mas ao mesmo tempo ainda não sei bem o que fazer disso que li. Por um lado, o que acontece às personagens tem sempre tristeza para dispensar aos leitores; por outro, essa mesma tristeza não é simples porque resiste a um fatalismo fácil. A Djaimilia escreve para que as palavras funcionem menos como explicação e mais como um ritmo concêntrico que se torna o interior das personagens posto à vista de quem lê. Não estamos só a ler, estamos a sofrer junto com aquilo tudo. São livros exigentes.

Talvez seja defeito meu que, enquanto pregador, gosto de encontrar o brilhozinho da fé em qualquer coisa que vejo, mas, de facto, creio que há também nos livros da Djaimilia um elemento de redenção constante. Geralmente vem em forma de entrega. Há solidão para dar e vender mas há sempre também alguém que se mete na solidão do outro e resolve não ir embora. Em “Ferry”, na história do casal Vera e Albano, isto sobressai. Topem esta frase: Vera e Albano eram “dois estranhos enamorados da estranheza que os apartava, unidos naquilo que os separava, fosse o amor não o conhecimento mútuo, mas o abraçar da incompreensão, o não querer resolver a estranheza, o abdicar de abrir a porta.”

Sei que o “Ferry” não foi escrito para servir de terapia para casais mas os meus olhos proselitistas não se dão ao luxo de desperdiçar esta moralização. O casamento não é subalterno da romantização que lhe pespegamos em cima. Nesse sentido, o casamento vai muito além da lógica redondinha e hollywoodizada das convergências existenciais. Não nos encontramos apenas quando nos encontramos; muitas vezes, encontramo-nos sobretudo quando coincide aquilo de que estou a fugir com aquilo de que o outro está a fugir. Não somos apenas rostos que se procuram uns nos outros, somos também fugas que se esbarram. Sim, o casamento é fantástico quando decide abrir portas que nos levam mais longe do que julgávamos possível e dar-nos o ar fresco da descoberta. Mas o casamento é igualmente fantástico pelas portas que mantém fechadas, em forma de estranheza não resolvida e abraçada.