Escrevo. Um grande pinheiro manso diante da varanda atravessa o azul do mar em frente e toca no sopé da serra depois. Mar e serra bordejam o teclado. É Verão.

Nunca fui dada a balanços de fim de ano nem a planos de ano novo para a mesma vida de sempre. Mas nestas alturas de solidão inesperada enquanto todos se juntam à volta da mesa e o trabalho em atraso nos isola do convívio estival, o coração salta um batimento e nesse intervalo a alma desprende-se do corpo para do alto rever a sua própria história.

Quando era pequena, muito pequena, pensava em quando fosse crescida.

Quando eu era crescida nesses dias de ainda tão pequena, era crescida sempre de saltos altos e vestido, saia, às vezes calças, dezoito anos crescidos ou mesmo vinte, bem cuidada, composta. Uma senhora, pois claro.

– Seja sempre uma senhora, ouviu?
– Sim, avó.

Quando eu era uma senhora de dezoito ou vinte anos, era obviamente casada e vivia numa casa onde as janelas francesas da salinha de estar da casa portuguesa abriam para um pequenino jardim de Inverno: uma árvore grande à sombra da qual uma mesa e duas cadeiras, e eu sentada, de saltos altos, bem cuidada, composta, e obviamente casada porque quando eu era pequena era sempre casada. Os maridos mudavam: Pedro Bala, Duque Próspero, Che Guevara, e o Eça, o mais tardio e mais que perfeito de todos os maridos.

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Quando eu era pequena escrevia sempre à sombra futura daquela grande árvore, logo não estivesse a chover, duas cadeiras, eu sentada numa delas, ao lado a cadeira vazia, a cadeira de quando o marido estivesse em casa, e eu escrevia, de facto, quando era pequena, histórias na minha Hermes Baby cor-de-laranja, oferecida pelo meu avô. Escrevia com papel químico para o caso de a cadela comer algumas folhas, ou de eu perder a pasta de cartão com elástico onde guardava os originais – as folhas dos leitores, folhas à solta, perdiam-se nem que fosse do desgosto crítico-cítrico da minha avó… oh. Escrever tudo outra vez até que um dia se ouvisse:

– Muito bem. Um texto em condições.

Nunca se ouviu. O dia não chegou a tempo.

Quando eu fosse grande também teria um cão e papel químico e dedos azuis, e ao lado da minha máquina de escrever estaria um cinzeiro porque quando eu fosse grande haveria de fumar como a minha avó: um movimento longo, ascendentemente lento, elegante na ponta dos dedos, port de bras clássico. Depois, o ininterrupto tac-tac das teclas com o cigarro a queimar-se no cinzeiro em equilíbrio incandescente. Sempre acompanhada pela ausência do marido porque a presença do Amor é muito forte na cadeira vazia.

Quando era pequena, quando os meus maridos chegavam, ouvia com muita atenção o que eles tinham para contar de tudo lá de fora e depois do jantar, ao café, na sala, eu contava de tudo de cá dentro. O cão dormitava na nossa sala durante o café de depois do jantar, quando eu era pequena.

Quando eu era pequena, com alguns maridos, a vida era mais movimentada do que com outros. Com o Michel Strogoff, por exemplo, era uma vida de estrada, os dois juntos, também gostava disso, além de que a Hermes Baby era portátil, leve, tinha uma alça: era uma mala quando a casa era viagem. Até porque de botas de montar também se é uma senhora, e uma mesa e duas cadeiras em qualquer sítio do mundo há, pode-se ouvir tudo mesmo em estrangeiro. E contar de tudo em português em qualquer lugar se pode, e assim escrever de fora para dentro, para Portugal, porque Portugal decerto haveria de querer saber de fora tal qual como quereria saber quando eu escrevia de dentro de casa para o mundo lá fora. Quando eu era pequena.

É Verão. O mar e a serra bordejam o teclado. Esta não é a minha casa. A minha casa não tem um pequenino jardim com uma árvore grande à sombra da qual. Ou um Amor na cadeira vazia. Uso ténis vezes demais e penteio-me vezes de menos. Não uso máquina de escrever. Não fumo há mais de vinte anos e Portugal não quer saber. Mas decerto escrevo e escreverei.