Tinha acabado de sair do restaurante A Colina, quando vejo sair do japonês quase em frente, do Koi Sushi, um grupo de miúdos – agora que penso nisto, não sei se andar nos vinte e tal anos ainda permite a classificação «miúdos» ou se é apenas mais uma das infantilizações que diariamente praticamos… Mas adiante.

Enquanto subia a rua pelo lado esquerdo, os quatro miúdos subiam-na pelo direito. No cruzamento da Filipe Folque com a António Enes, um dos rapazes diz alto, apontando para a bandeira de Israel, no último andar do prédio de gaveto, onde fica a embaixada: «Olha».

Era uma miúda alta, gira, de maxi-vestido e cabelo por baixo dos ombros, com aquele andar elástico de galgar distâncias que só na juventude se tem e depois dá gosto ver. E de repente, ela grita: «Que nojo, que nojo! Assassinos! Genocidas!» Isto sem se deter, enquanto caminhava com os amigos em direcção ao carro estacionado perto.

Ontem, vejo sem acreditar Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, de estrela amarela ao peito na reunião do Conselho de Segurança.

Como se nada disto fosse suficiente, leio que a Bolívia, o Chile e a Colômbia mandaram retirar os respectivos embaixadores de Israel para marcar o repúdio e a condenação aos ataques a Gaza, condenação reforçada pelo Brasil – e aqui dou nota de que nenhum destes países mandou retirar quem quer que fosse da Rússia quando esta invadiu a Ucrânia, ou sequer condenou tal invasão.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estes três acontecimentos têm em comum a falácia de que as posições são mutuamente exclusivas, são ou-ou: ou connosco ou contra nós. O mundo a preto branco e uma escola de ódio resolvida pela aniquilação do inimigo, qualquer que ele seja: o que entra pelas nossas fronteiras ou o que pensa o que nós não pensamos, do género aos pronomes.

Isto, na verdade, revela o quão primária é a fase de desenvolvimento do nosso pensamento político, somos como as crianças de seis, nove anos, sem dúvidas nem zonas de sombra, há o bem, o mal e entre ambos nada assoma.

O Hamas retomou o slogan de 1966, de Assad, o pai, não o filho: do rio ao mar a Palestina será livre – temo-lo visto nos cartazes das manifestações pró-Palestina em todo o mundo, aqui em Lisboa também, na sua versão inglesa, From the river to the sea Palestine will be free. Isto significa que do Jordão ao Mediterrâneo o território será integralmente palestiniano. O Likud de Nethanyahu respondeu: entre o mar e o Jordão só a soberania israelita. Dois absolutos com seis, nove anos.

Sabemos, desde 7 de Outubro, que o objectivo do Hamas seria extrair de Israel a mais violenta das respostas e assim condenar o processo de paz em curso, e o acordo com a Arábia Saudita. Sabemos, desde 7 de Outubro, que a escalada da violência serve não apenas ao Hamas mas ao Irão, à Rússia – e à desagregação das democracias ocidentais.

Mas nem diante de teocracias fascistas sob a sharia, como a do Irão, autocracias, ou melhor, cleptocracias como a russa, nos conseguimos unir para defender o Estado de Direito e as democracias ocidentais. Dividimo-nos e aumentamos o poder de quem nos quer destruir – e quem o quer, não é de certeza a população civil, não são os israelitas nem os palestinianos, ou as mulheres e homens iraniananos, ou os russos e os ucranianos, mas elites governamentais e os seus fantoches.

Porque é tão difícil ultrapassarmos as diferenças que nos separam, a nós que vivemos no conforto de democracias plenas ou quase, e tão fácil pedir um cessar fogo a quem tem de ultrapassar diferenças imensas?

Não temos seis ou nove anos. A justiça absoluta, o bem inteiramente bom, e o mal inteiramente mau, não existem. É preciso estabelecer uma hierarquia de valores. Negociá-los à exaustão.

E perceber que o futuro se constrói, tantas vezes, quase sempre, à revelia das diferenças do passado.