O regime português de “salvaguarda dos ativos estratégicos essenciais para a garantia da segurança pública” completa 10 anos no próximo dia 15 de setembro. Mas o diploma mantém-se inalterado não obstante ter sido objeto de uma apreciação parlamentar dois dias depois (que caducou sem desenvolvimentos). E nem a circunstância de 1 dos proponentes ter integrado o XXI e o XXII governos trouxe novidades. Também não se conheceram reações por parte da oposição.

Porque importa, então, recordar agora a existência do regime português quando, para mais, não há notícia de ter sido aplicado para proibir alguma aquisição em território nacional? Porque a Europa e o Mundo mudaram muito desde então e o “efeito de contágio” a Portugal enquanto Estado-membro da UE é inevitável. Existe, aliás, neste momento uma confluência inédita de circunstâncias que pode forçar a modificação do regime português muito em breve e para a qual o legislador se deve preparar se ainda não o fez.

Importa recordar que, na sequência da criação do regime de análise de IDEs na UE em 2019 e dos reiterados apelos da Comissão para o reforço dos regimes nacionais preexistentes, no ano seguinte o XXII Governo terá criado um Grupo de Trabalho Interministerial para a modificação do regime de 2014. Desde então que não há mais informação pública sobre o tema nem a Comissão Europeia no seu relatório anual sobre os IDEs na UE divulgou qualquer evolução.

Simplesmente, em 24 de janeiro de 2024 a Comissão Europeia propôs ao Parlamento Europeu e ao Conselho uma modificação significativa do atual regime de análise de IDEs na UE como parte integrante do esforço global de reforço da segurança económica. E, para além de invocar a sua competência exclusiva em matéria de política comercial comum, a Comissão recorre à sua competência partilhada em matéria de criação do mercado interno para justificar nomeadamente a correção “das diferenças entre os mecanismos de análise dos Estados-Membros, que podem entravar as liberdades fundamentais e ter um efeito direto sobre o funcionamento do mercado interno”.

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As modificações propostas são muito relevantes face ao regime em vigor e respeitam, designadamente, a aspetos substantivos como a inclusão de investimentos realizados por investidores da UE que são, em última análise, controlados por pessoas singulares ou empresas de um país terceiro; e a uma maior harmonização das regras processuais por exemplo da obrigação de cooperação entre as jurisdições nacionais e estas e a Comissão para partilha de informação e emissão de pareceres sobre os IDEs.

Ora, resulta inequívoco das Orientações Políticas para o Mandato de 2024-2029 da nova Comissão Europeia que uma das prioridades da nova política económica externa inclui a segurança económica e que a revisão do regime de análise de investimento estrangeiro na UE é para concluir. O processo legislativo prossegue nesta rentrée. Embora se possam suscitar reservas quanto à legalidade da ambição da Comissão na europeização das suas competências de análise dos IDEs (e concomitante redução da margem dos Estados-membros), antecipa-se a sua aprovação mesmo que matizada.

Entretanto assistimos no último mês à crescente atenção e intervenção das autoridades públicas em transações privadas em “setores estratégicos” para a segurança e a ordem pública, incluindo os menos óbvios como é o caso do setor imobiliário. Senão vejamos:

Em 27 de agosto último o Conselho de Ministros Espanhol decidiu “não autorizar o investimento estrangeiro direto na Talgo S.A. por parte de Ganz MaVag Europe Private Limited, “por motivo de protección de los intereses estratégicos y de la seguridad nacional de España”. De acordo com notícias da imprensa estariam em causa “as ligações do consórcio húngaro ao governo de extrema-direita de Viktor Orbán e, por consequência, à Rússia e a Vladimir Putin.

Tradicionalmente a Suécia era um um país mais avesso a este tipo de escrutínio. Mas no final de 2023 criou um regime de análise do investimento estrangeiro. E desde 1 de setembro último que o âmbito de aplicação do mesmo é bastante mais abrangente. Entre outras novidades, passa a incluir atividades como a vigilância ou monitorização remota de sistemas de alarme de incêndio ou sistemas eletrónicos de alarme, bem como a sua manutenção por autoridades ou empresas. E amplia significativamente os serviços no âmbito do setor das tecnologias de informação e comunicação.

Também a Noruega (país do Espaço Económico Europeu) recentemente proibiu uma transação imobiliária privada, invocando a natureza estratégica do imóvel em causa – em Svalbard, no Ártico, cujo estatuto jurídico tem peculiaridades.

Em paralelo, perspetiva-se a adoção de um regime jurídico específico na Finlândia que permita proibir transações imobiliárias com base na nacionalidade (russa) dos adquirentes e que visa “prevenir possíveis influências hostis contra a Finlândia”. De acordo com notícia na imprensa, já no ano passado o governo finlandês terá proibido a aquisição de um lar de idosos nas proximidades de um centro de treino militar finlandês.

Last but not least haverá que não excluir que o surgimento em Portugal de um projeto de aquisição de controlo sobre um “ativo estratégico” motive o legislador a ponderar uma modificação ao regime vigente para evitar candidatos não idóneos, para mais se essa aquisição for suscetível de ter impacto noutro Estado-membro da UE com um regime mais estrito como é o caso de Espanha. Hard cases make bad law?

Perante todas estas circunstâncias e perspetivas, e outras igualmente ponderosas, é da maior conveniência que a futura modificação legislativa a aprovar em Portugal seja devidamente ponderada, informada e “desligada” de quaisquer casos concretos. Mantendo-se a convicção de que Portugal quer ser um destino atractivo para investimento produtivo, é essencial assegurar uma maior segurança jurídica e previsibilidade para os investidores e demais stakeholders. Além de naturalmente assegurar também o cumprimento das obrigações que lhe incumbem enquanto Estado-membro da UE.

A nosso ver, desde logo impõe-se nesse exercício a prévia compreensão do atual regime de análise e quiçá do aparente (?) desinteresse a que o mesmo tem sido votado em Portugal, em resultado de um conjunto de circunstâncias. Desde logo, trata-se de um diploma que pela sua natureza é de aplicação residual e excecional, e cujas particularidades e antecedentes mereceriam uma análise de fundo.

Também há que recordar que foi ponderado pela primeira vez no verão de 2011 como “sucedâneo possível” dos direitos especiais (incluindo golden shares em empresas estratégicas como a GALP e a PT) a cuja supressão as autoridades portuguesas se comprometeram no Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal (“PAEF”) pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional (“Troika”) logo em maio de 2011.

Foi apenas quase três anos depois, e realizadas inúmeras interações com a Troika, que o Governo recebe a luz verde da Assembleia da República para criar o “regime de salvaguarda dos ativos estratégicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacional e a segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energia, transportes e comunicações, através da instituição de um procedimento de investigação às operações relativas a tais ativos”. Não é demais lembrar que, logo no outono de 2011, a Troika se pronunciou muito desfavoravelmente à criação deste regime, e foi-o reiterando sucessivamente, o que dada a condicionalidade do cumprimento do PAEF para o desembolso das tranches do Programa terá seguramente contribuído para a duração do processo e para a evolução da redação inicial.

Mas acima de tudo haverá que considerar qual a estratégia do legislador Português em conjugação com os desenvolvimentos havidos na UE e noutras jurisdições nacionais, e perspetivas de evolução – como as já acima mencionadas -, bem como a jurisprudência dos tribunais europeus, por exemplo quanto à aplicação dos regimes de análise nacionais e sua articulação com aquele da UE, ou do dever de fundamentação (tão importante para a segurança jurídica). E valerá também a pena, nem que seja por curiosidade, revisitar o processo legislativo e as propostas quanto ao conteúdo do regime português como, por exemplo, aquela transmitida pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores sobre a inclusão dos recursos hídricos e suas infraestruturas como ativos estratégicos.

Embora o objetivo subjacente à salvaguarda dos “ativos estratégicos” não corresponda à proteção das infraestruturas críticas – nem a nível europeu nem nacional, este e outros regimes jurídicos deverão ser também considerados, e essa articulação num mundo em mudança é um desafio. Senão pense-se, também, na relevância do Regulamento das Subvenções Estrangeiras, que confere à Comissão competência para investigar se as contribuições financeiras concedidas por governos de países terceiros a empresas que operam na UE constituem subvenções que distorcem a concorrência, podendo impor medidas para corrigir os seus efeitos de distorção ou mesmo proibir.

É que, desde logo na perspetiva dos potenciais investidores, a ponderação sobre as exigências de cumprimento de condições precedentes a um projeto de transação tem a maior relevância para efeitos de custo-benefício e antecipação do possível lugar a ocupar no ranking dos candidatos, se os houver. Também para as autoridades públicas (incluindo as entidades adjudicantes) o conhecimento e consideração das condições precedentes é relevante, desde logo na ponderação dos procedimentos e prazo expectável para a concretização da transação. Com efeito, o contributo do legislador é fundamental para assegurar mais transparência e segurança jurídica, e assim diminuir os imponderáveis.

Há quem defenda que um regime de análise de investimento estrangeiro mais exigente como aquele pretendido pela Comissão Europeia – e agora em apreciação pelos co-legisladores Parlamento Europeu e Conselho – pode prejudicar o tão pretendido investimento estrangeiro no nosso país. Mas este preconceito parece ser contrariado, designadamente, pela circunstância de várias das jurisdições nacionais na UE que têm regimes mais exigentes serem aquelas que recebem mais investimento estrangeiro segundo dados da Comissão Europeia.