Em Portugal passou despercebido o recente relatório da Comissão Europeia sobre o primeiro ano de aplicação do mecanismo de escrutínio dos investimentos diretos estrangeiros (IDE) na União Europeia (UE) e um documento de acompanhamento.

Não deixa de ser curioso, atendendo a que resulta dos mesmos que as autoridades Portuguesas estarão a preparar uma alteração ao diploma que estabelece o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir a segurança da defesa e segurança nacional e do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energia, dos transportes e comunicações (Decreto-Lei n.º 138/2014, de 15 de setembro). Ao abrigo do mesmo, o Conselho de Ministros tem o poder de, “em circunstâncias excecionais e através de decisão fundamentada, se opor à celebração de negócios jurídicos que resultem, direta ou indiretamente, na aquisição de controlo, direto ou indireto, sobre infraestruturas ou ativos estratégicos por pessoas singulares ou coletivas de países terceiros à UE e ao Espaço Económico Europeu, na medida em que tais negócios ponham em risco a defesa e segurança nacional ou a segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional”. Não se conhecem quaisquer decisões de oposição nos sete anos de vigência do diploma e foram muito poucas as transações cujas entidades envolvidas tornaram pública um hipotética aplicação do diploma às mesmas como condição precedente para a sua concretização.

Note-se que o atual diploma foi aprovado pelo XIX Governo ao abrigo da autorização legislativa que lhe foi concedida pela Assembleia da República (Lei n.º 9/2014, de 24 de fevereiro). De seguida foi objeto de um pedido de apreciação parlamentar por parte de 14 deputados mas acabou por caducar um ano depois. Alguns dos subscritores vieram a integrar os governos que se seguiram mas o diploma não foi modificado.

Segundo os referidos documentos da Comissão, em 2020 terá sido criado um Grupo de Trabalho interministerial ao nível técnico e no ano passado as autoridades Portuguesas terão desenvolvido esforços para atualizar o diploma em vigor. Já haverá um acordo de princípio sobre quais os ajustamentos a introduzir, não obstante permanecerem em aberto matérias importantes, pelo que não seria possível antecipar o inicio do processo legislativo.

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É um dado objetivo que nos últimos anos se tem assistido a um crescente “protecionismo económico” noutros continentes em simultâneo com uma visibilidade crescente dos investidores das geografias em causa na UE. Tal levou a Comissão a propor um novo quadro para o escrutínio de investimentos diretos estrangeiros em setembro de 2017 porque, nas palavras do Presidente da Comissão à data proferidas no discurso anual sobre o estado da União Deixem-me dizer isto de uma vez por todas: não praticamos o comércio livre de forma ingénua. A Europa terá sempre de defender os seus interesses estratégicos”.

Inicia-se assim uma nova era em 19 de março de 2019 com a aprovação pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu do novo quadro para o escrutínio dos IDEs, o qual se torna plenamente operacional um ano e meio depois. Este novo quadro “estabeleceu um regime à escala da UE em que a Comissão e os Estados-Membros coordenam as suas ações para proteção dos interesses estratégicos da UE relacionados com os IDEs. Tal inclui, entre outras ações, a possibilidade de trocarem informações e, se necessário, manifestarem eventuais preocupações relacionadas com investimentos específicos; habilita a Comissão a pronunciar-se sempre que um investimento ameaçar a segurança ou a ordem pública de mais do que um Estado-Membro, ou quando um investimento for suscetível de comprometer um projeto ou programa de interesse para toda a EU – este parecer deve ser tomado “na máxima conta” pelo Estado-membro em causa; e estabelece determinados requisitos fundamentais para os Estados-Membros que mantêm ou adotam um mecanismo de análise a nível nacional por razões de segurança ou de ordem pública.

Complementa-se, assim, a possibilidade de que os Estados-Membros já dispunham de, em circunstâncias excecionais, derrogarem a livre circulação de capitais nos termos previstos no Tratado sobre o Funcionamento da EU. E que, na prática, se traduz em medidas restritivas assentes em razões de ordem pública ou de segurança pública.

Acresce que, em março de 2020 e no contexto da pandemia de COVID 19, a Comissão emitiu orientações aos Estados-Membros apelando a que “estabelecessem um mecanismo de análise de pleno direito e garantissem uma abordagem firme em toda a UE para a análise do investimento estrangeiro, num momento de crise de saúde pública e de correspondente vulnerabilidade económica”. Já em 2021 a Comissão “reitera o seu apelo” à criação e salvaguarda de mecanismos de escrutínio nacionais “plenamente” funcionais no contexto da Revisão da Política Comercial da União Europeia para Uma política comercial aberta, sustentável e decisiva”.

Atualmente o enquadramento é muito distinto daquele à data da aprovação do diploma Português em 2014 e a evolução ocorrida terá que ser considerada pelo legislador nacional e se exemplifica acima. Para mais, além de conter um conjunto de dados quantitativos importantes para a compreensão da realidade noutros Estados-membros, o relatório da Comissão sobre o primeiro ano de aplicação do mecanismo de escrutínio dos IDEs contém um conjunto importante de ações a implementar no futuro próximo e que são suscetíveis de influenciar o regime Português. Ademais de mencionar hipotéticos aperfeiçoamentos de uma perspetiva procedimental, o apelo reiterado da Comissão quanto à eficácia dos mecanismos nacionais pode influenciar o alargamento do âmbito de aplicação objetivo e subjetivo dos mecanismos de escrutínio. Por outro lado, o legislador não deverá ignorar a relevância que os investidores estrangeiros conferem à existência e âmbito de um mecanismo de escrutínio de IDEs para efeitos da ponderação sobre a sua realização, além da segurança jurídica que o mesmo deverá assegurar.

A dissolução da Assembleia da República e a convocação de eleições legislativas para o próximo dia 30 de janeiro terão porventura atrasado o processo de decisão quanto à estratégia a seguir mas o futuro Governo será confrontado com esta temática. E considerando que se trata de uma matéria de política comercial e que a recuperação económica da crise resultante da situação pandémica de COVID 19 influencia os IDEs, este é um tema que assume particular acuidade no atual contexto.