Às vezes, faltamos à própria vida. Um compromisso, um incidente qualquer, retém-nos noutro lugar, de maneira que ficamos a ver passar a nossa própria história, do lado de lá do vidro, como o comboio que se perdeu. Nada dramático – basta esperar o próximo e logo retomaremos a normalidade – mas aquele acontecimento em particular já não voltará. Deu-se sem nós, provando, pela enésima vez, quão pouca falta fazemos ao universo… Sim, estou a falar do Sport Club Lusitânia vs. Sport Lisboa e Benfica de passada sexta-feira.

Neste grande mundo tornado pequeno, onde tudo parece acessível, próximo e rápido, talvez não lhe consiga explicar a excepcionalidade deste acontecimento, mas tentemos.

O Lusitânia-Benfica não foi apenas mais um jogo da terceira eliminatória da Taça de Portugal 2023/24. Também não foi só o duelo entre um clube pequeno, do terceiro escalão, e o campeão nacional. Foi o jogo com que mais sonhei e nunca me aconteceu na infância: o encontro entre o clube da terra e o do coração.

Vejamos. Em Angra do Heroísmo, como noutras cidades do país, há uma réplica quase simétrica do derby da capital: os sportinguistas são do Lusitânia, filial número 14 do SCP; os benfiquistas do Angrense, filial número 3 do SLB. Em tempos mais antigos, havia cafés para uns e para outros. Ninguém de bom senso se arriscava a atravessar a estrada para ir beber um fino à taberna dos outros – nem que a nossa estivesse fechada. Passava-se sede. Bebia-se em casa. Mantinha-se a dignidade.

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Sucede, todavia, que o Lusitânia era o clube do meu avô Edilberto e, portanto, a concessão que lhe podia fazer, já que nunca poderia, quereria ou conseguiria sequer, ser do seu Sporting de Lisboa. Além disso, tinham um açor por símbolo, em vez do leão, e eram a grande potência do futebol local, 38 vezes campeã distrital – ainda hoje, um recorde.

Uma história igual a tantas outras, de que cada vez que um “grande” calha em sorteio a um pequeno clube de um pequeno lugar? Mais ou menos. Nas ilhas, acentuam-se os contornos da improbabilidade. Da primeira vez que um clube da ilha Terceira teve oportunidade de defrontar um grande, o jogo nunca aconteceu. Foi na mítica campanha de 63/64, quando, justamente, o Lusitânia chegou às meias-finais da Taça de Portugal. As regras ditavam uma eliminatória a duas mãos com o Porto, mas bastou aos azuis e brancos alegarem dificuldades nas ligações aéreas para a Federação Portuguesa de Futebol anular os jogos e decretar a passagem administrativa do Porto à final. Assim. Ainda estava longe Pinto da Costa.

Já o Benfica, só em duas ocasiões tinha estado na ilha – e ambas para defrontar a filial. Em Junho de 1960, num municipal a rebentar pelas costuras, ganhou ao Angrense por 2-0, para depois, na Luz, cilindrar sem apelo nem agravo por 10-0. Sete anos depois, já bicampeão europeu, com Eusébio e companhia, regressou para um particular com o mesmo Angrense em que o resultado final voltou a ser o menos (mas, já que pergunta, foram 6 a 1).

Lusitânia-Benfica, entre todas as possibilidades combinatórias desse grande mundo leibniziano, nunca tinha acontecido. E por isso, agora, via o João Mário a marcar de calcanhar, as camisolas rubras a arder como archotes no cenário verde da minha ilha onde chove sempre, e pensava em como, numa história alternativa, o meu avô Edilberto não morrera em 2003 nem razões profissionais tinham retido o neto em Lisboa. Estávamos os dois ali, no João Paulo II, cada um puxando pelas suas cores e a trocar provocações sobre os jogadores do outro.

Acresce a história deste estádio, construído no início dos anos 90, quando este escriba andava no ciclo preparatório, a 600 metros de distância, e nos esquivávamos para lá na hora de almoço para ver o andamento da obra e sonhar, precisamente, com o dia em que o Benfica fosse ali jogar. O João Paulo II, baptizado com esse nome no tempo em que tudo parecia que nos acontecia: visitas do Papa, Presidências Abertas, os aviões americanos da Guerra do Golfo a passarem-nos por cima da cabeça nas aulas de Educação Física para levantar e aterrar nas Lajes. O João Paulo II inaugurado em 1992 com um Portugal-Canadá em selecções de esperanças, que a equipa das quinas venceu por 1-0 com um golo de… Rui Costa. O João Paulo II onde Cristiano Ronaldo fez a estreia no futebol profissional, quando o Sporting B visitou a ilha e perdeu por 2-1 com… o Sport Club Lusitânia.

Portanto, sim. Vi o Samuel Soares a ser batido no penalty do Enzo Ferrara e ouvi o meu avô Edilberto a gozar-me como no tempo em que garantia que o Bento já tinha tudo assinado para trocar a Luz por Alvalade. Especularíamos se aquele Cabral ainda seria alguma coisa à minha avó Leopoldina, do ramo sul-americano de Paraíba da família. E sairíamos felizes simplesmente por ter visto aquilo acontecer, o Rafa com uma vaca em fundo, águias e açores voando juntos, baixinho, como se toda a vida o mundo tivesse sido assim, tão próximo.

E não me falem da Real Sociedad nem do pleno de derrotas na Liga dos Campeões. Que interessa a orelhuda quando podemos levantar em ombros os fantasmas? Uma vez por outra, importam mais a memória e a fantasia do que essa desenxabida da realidade.