Como é possível que num país em que os licenciamentos são um inferno para os cidadãos, um partido possa demolir uma casa considerada um marco na arquitectura portuguesa? Operação especial. Esta é a chave da questão. Tal como a Rússia diz não ter invadido a Ucrânia, mas sim estar a desenvolver uma operação militar especial, também o PCP não se dedica à especulação imobiliária (para mais à custa da destruição de importante património arquitectónico) mas sim à procura duma solução que valorize a cidade, no caso de Aveiro.

Tudo começa nos finais de 1974 quando o PCP ocupou em Aveiro a Casa Aleluia. Para o PCP a coisa não se podia fazer por menos: um projecto assinado por Silva Rocha, a Vivenda Aleluia, tinha sido a residência duma família ligada à cerâmica, a família Aleluia. O seu interior, de que faziam parte importantes peças de cerâmica, reflectia essa ligação.

Em 1974, a Casa Aleluia estava devoluta e antes que o ano acabasse já funcionava ali o Centro de Trabalho de Aveiro, designação que os comunistas dão às suas delegações e sedes.

Em 1974, note-se, os partidos não tinham sedes nem delegações. Conseguiram-nas à custa de ocupações supervisionadas pelo MFA e de contratos-empréstimos negociados sob o receio das ocupações. Também existiram doações e cedências mas basicamente impôs-se a lei do mais forte, não apenas em relação aos proprietários dos edifícios ocupados-alugados mas entre os próprios partidos. E, entre estes, o PCP podia mais. Assim, do modernista Hotel Vitória em Lisboa, que o PCP alugou em 1975 (seria interessante conhecer esse contrato de arrendamento), ao símbolo da chamada Casa Tradicional Portuguesa, que era a Casa Aleluia em Aveiro, o PCP instalou-se no que havia de mais interessante, imobiliariamente falando.

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Com a normalização democrática, e num processo replicado em tantas outras ocupações, o ocupador tornou-se inquilino. Até que chegamos ao ano de 2006.

Em 2006 os proprietários da Casa Aleluia e senhorios do PCP anunciaram a sua intenção de demolir a Vivenda Aleluia para, no mesmo local, construírem um edifício de cinco andares. Ainda 2006 não tinha acabado e já a Câmara de Aveiro, então liderada por Élio Maia, independente eleito com o apoio duma coligação PSD-CDS – indeferia por unanimidade o pedido de demolição da Vivenda Aleluia e consequentemente o pedido de viabilidade para um novo edifício com cinco andares a ser construído no mesmo local. A autarquia invocou para este indeferimento um parecer da Comissão Concelhia de Património  e do Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) que classificara a “Vivenda Aleluia” como de “interesse arquitetónico”.

O PCP considerou a decisão “exemplar e explanava o seu desejo de ver esta decisão alargada a outros edifícios da cidade de Aveiro. Invariavelmente salientava-se a importância dos painéis de azulejos provenientes da antiga fábrica Aleluia, que faziam daquela vivenda um lugar único, e do esforço do PCP na preservação do edifício – preservação essa em que os senhorios, acusava o PCP, participavam a contragosto.

Em resumo a luta do PCP pela Casa Aleluia em 2006 era como que o prolongamento daqueles dias de Junho de 1975 quando povo em Aveiro cercara a vivenda sede do PCP com o intuito de correr com os comunistas.

Em 2014 – passaram entretanto oito anos – um comunicado da Direcção da Organização Regional de Aveiro (DORAV) do PCP informava que adquirira o edifício onde se encontra instalado o seu Centro de Trabalho, na Avenida Lourenço Peixinho. Por outras palavras, o PCP passara de inquilino a proprietário. Ou, se se preferir o outro lado desta transação imobiliária: uma vez inviabilizada pela autarquia qualquer operação imobiliária, os proprietários optaram por vender a Casa Aleluia aos inquilinos. Qual foi o valor da venda? Em que medida é que esse valor foi ou não afectado pela decisão da autarquia de inviabilizar a demolição da Casa Aleluia? – Ninguém fez estas ou outras perguntas, tanto mais que se considerou que o destino da Casa Aleluia estava assegurado. Nada mais enganador.

Em 2018 o PCP “diligenciou junto da Câmara Municipal para recolha de informação sobre o imóvel e o espaço envolvente e as condições de edificabilidade, de acordo com os instrumentos urbanísticos do município”. Começava a operação imobiliária especial do PCP, aquela em que o PCP vai fazer exactamente o contrário daquilo que defendera: não só pretende demolir a Casa Aleluia como, no mesmo local, construir, um edifício. Sim, há uma diferença em relação aos antigos proprietários: em 2006, os então senhorios do PCP queriam construir um prédio com cinco pisos. O PCP sonha mais alto e vai até aos sete. Dezassete apartamentos irão ocupar em altura o espaço da antiga Casa Aleluia. Irão estes apartamentos para arrendamento acessível? Temos mesmo de perguntar, não só por causa da demagogia que caracteriza os comunistas na hora de discutir o arrendamento, mas também porque já não resta nada da Casa Aleluia.

Esta semana, mais precisamente a 7 de Setembro, o que ainda se mantinha de pé da Vivenda Aleluia foi abaixo. Pelo meio ainda se tiveram de ouvir aquelas arengas comunistas em prol da cultura a propósito da entrega dos azulejos da dita casa à autarquia, como se essa não fosse a opção derradeira perante o avançar do camartelo.

E o parecer do  Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) que classificava a “Vivenda Aleluia” como de “interesse arquitetónico”, e que em 2006 inviabilizou o projecto de demolição-construção dos antigos proprietários? Pelos vistos não tinha qualquer valor. E a sempre tão activa Direção Geral do Património Cultural (DGPC), a quem foi pedida a classificação da Casa Aleluia como património nacional? Recusou. E a autarquia de Aveiro, liderada por Ribau Esteves (PSD/CDS), o que fez, ou, melhor dizendo, não fez? Decidiu não classificar o imóvel como património de interesse municipal.

Como é que em dezassete anos a administração central e local mudou assim de opinião? Sim, admitamos então que não se justificava a classificação da Casa Aleluia como património nacional ou municipal, mas em 2006 o entendimento foi outro. O que mudou na Casa Aleluia entre 2006 e 2023 além de o PCP, que era inquilino, ter passado a proprietário? Temos o direito de saber e o dever de perguntar.

Os comunistas são exímios em impor brutalmente a sua vontade nos períodos em que mandam e, não menos importante, em retirar todas as vantagens da legislação que contestam quando estão na oposição. Ficou para a história o despedimento dos trabalhadores de O Diário, um jornal afecto ao PCP, ao abrigo da legislação aprovada pelo governo de Cavaco Silva, que obviamente o PCP crucificava nas ruas por causa da implementação dessa mesma legislação.

O acontecido com a Casa Aleluia ilustra bem esta táctica do PCP: em 1974, os comunistas impõem a ocupação. Depois usam a lei para se tornarem inquilinos do edifício que tinham ocupado. Em seguida, e sempre no estrito cumprimento do quadro legal, conseguem ser protegidos na sua condição de inquilinos, não só mantendo a sua sede na Casa Aleluia como conseguido que fosse inviabilizado o projecto imobiliário dos então proprietários e senhorios. Quando finalmente se tornam proprietários vêem ser-lhes reconhecidos direitos que tinham sido negados anteriormente a outros. Tudo sempre dentro da lei. A definhar nas urnas, o PCP consegue não só demolir a Casa Aleluia – que quando lhe deu jeito defendeu como uma extraordinária referência arquitectónica – como se vai dedicar aos investimentos imobiliários. É em casos como este que se vê o poder da esquerda. Um poder que não tem correlação com o voto.

A dissociação entre os actos, as palavras e as alegadas boas intenções dos comunistas é um dos maiores embustes do século XX que, contra toda a racionalidade, se mantém vivo no século XXI.

Portugal, como muitos outros países, não tem qualquer monumento às vítimas do comunismo. Daí que me parece adequado que o edifício que vai ser construído no local onde existiu a Casa Aleluia se torne um símbolo do Embuste do Comunismo.

PS Acode-me uma dúvida inquietante: terá o PCP algum projecto para o Hotel Vitória? Sim, o PCP é de há muito o proprietário deste magnífico edifício assinado por Cassiano Branco de que (como não?) se tornaria inquilino em 1975. Se o PCP estiver com dificuldade em arranjar argumentos para legitimar uma qualquer intervenção no seu Centro de Trabalho da Avenida da Liberdade pode invocar que o edifício precisa de ser desnazificado pois naqueles anos em que o centro de Lisboa era um ninho de espiões, o então muito confortável Hotel Vitória gozava da preferência dos agentes do Eixo.