1 O mecanismo de representação

Pode não ser imediatamente evidente, mas o elemento central das democracias liberais, aquele que distingue as propostas democráticas liberais de outro tipo de teorias democráticas, é o mecanismo de representação. Trata-se de um conceito político eminentemente moderno: não existia nas democracias antigas, onde o cidadão expressava a sua própria voz e não se via a si mesmo como estando a representar outras pessoas – é por isso que falamos em democracia direta.

No quadro do liberalismo, a representação assume uma função essencial: ela permite o distanciamento necessário para decidir de forma racional, objetiva, imparcial, o mesmo é dizer, justa. Ao contrário de uma certa tradição francesa assente na ideologia da Razão, os filósofos britânicos estiveram sempre conscientes do poder dos sentimentos, emoções ou afetos; mas acabaram por cunhar uma tradição que permitia não estarmos condenados ao seu jugo (procurando o equilíbrio privado e o distanciamento público).

O mecanismo de representação política é disso exemplo: o exercício do poder legislativo por parte de representantes permitiria tomar decisões melhores pois estes seriam chamados a discutir e a decidir, não interesses pessoais, relativamente aos quais não conseguimos ser objetivos e imparciais, mas o bem comum, com distanciamento e racionalidade. (Mantemo-nos no domínio da teoria, como é evidente.)

Um texto clássico nesta matéria é o discurso de Edmund Burke aos constituintes de Bristol, de 1774, pelo qual o autor irlandês estabelece os princípios fundamentais da representação liberal. De acordo com Burke, o deputado recebe um mandato de confiança para, usando as suas competências e os seus conhecimentos, tomar as melhores decisões. Os representantes devem, neste sentido, desempenhar uma função específica de deliberação sobre o bem comum e não estar sujeitos aos interesses e preconceitos dos eleitores:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“O parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, interesses esses que cada um deve manter, como agente e defensor, contra outros agentes e defensores; o parlamento é antes uma assembleia deliberativa de uma nação, com um só interesse, o do todo; onde devem guiar, não os objetivos locais, nem os preconceitos locais, mas o bem geral, resultante da razão geral do todo.”

É este mecanismo de representação que se encontra hoje sob ataque.

2 O princípio da representatividade

De facto, o mecanismo de representação tem sido posto em causa não só pelas teorias de democracia participativa, que apelam à participação direta dos cidadãos, mas também pelas teorias populistas, que reclamam uma relação direta entre eleitores e líder, sem necessidade de mediação parlamentar. É igualmente posto em causa pelos movimentos políticos identitários, que transformam o princípio da representação num princípio de representatividade.

A lógica da representatividade passa pelo argumento identitário que já apresentei: como a nossa identidade (sexual, racial, etc.) determina a nossa forma de ver o mundo, a única maneira de os interesses dessas identidades serem salvaguardados é através de representantes que pertençam a essas identidades. O princípio de representação deveria ser, nessa medida, substituído por um princípio de representatividade: o objetivo deixa de ser o de os representantes permitirem um distanciamento (racional, objetivo, imparcial) sobre os assuntos, garantindo uma deliberação universal do bem comum; mas, antes, que os deputados estejam o mais próximo possível dos representados: só assim compreenderão verdadeiramente os seus interesses e poderão defendê-los. Joacine Katar Moreira simbolizou precisamente este tipo de argumentação entre nós.

Se seguirmos o argumento até às últimas consequências, o parlamento deveria representar a sociedade como um espelho e de acordo com uma lógica de proporcionalidade. É, aliás, por esta razão que tantas feministas, desde que não enveredem na teoria do género, se fixam obsessivamente nos 50% de deputados do sexo feminino.

Ora, foi precisamente este princípio de representatividade que, na lógica da politização de tudo, foi importado da dimensão política para o domínio artístico: pensemos na obsessão hollywoodesca com a diversidade do elenco, mesmo que à custa de deturpações históricas, e na preocupação com atribuir prémios a certas identidades; pensemos na discussão de quem pode desempenhar papéis de trans ou de pessoas com deficiência, confundindo-se representar com representatividade; e pensemos nas polémicas em torno dos critérios que devem presidir à escolha de artistas para representar o país (que tratei aqui) ou para a atribuição de reconhecimentos: vale mais a qualidade da obra ou a identidade do artista?

Mais uma vez: quando aplicamos critérios políticos a domínios não políticos, os critérios anteriores perdem-se. No caso do mundo artístico, deixamos de destacar aqueles que são os melhores (com tudo o que há de subjetivo nesta escolha, é verdade) para destacar certas identidades. Mas não estaremos com isto a destruir o entendimento clássico de obra de arte como valorização da excecionalidade individual?

3 O problema das orquestras

Este é precisamente o contexto de um dos tópicos de discussão mais acesos no mundo artístico norte-americano: a composição das orquestras musicais. O problema é geralmente apresentado da seguinte forma:

“Durante décadas, as orquestras norte-americanas debateram-se com a falta de diversidade entre os seus músicos. Elas mudaram as audições, criaram bolsas de estudo e diversificaram os programas dos seus concertos. Mas as maiores orquestras dos EUA continuam a ser maioritariamente brancas.”

Importa começar por notar que, no caminho de correção gradual das desigualdades, o problema não foi ignorado e foram adotadas medidas que visavam corrigir possíveis discriminações e oportunidades desiguais. Nas últimas décadas, foram implementados programas de apoio para músicos oriundos de classes sociais mais desfavorecidas e as audições, para a escolha dos músicos, foram corrigidas de acordo com o princípio de “blind audition” (audições cegas), para que mulheres ou elementos de grupos minoritários não fossem preteridos em resultado da sua identidade.

As audições cegas são um exemplo típico de medidas corretivas liberais: se queremos escolher os melhores músicos, independentemente da sua identidade, então nada mais justo do que submeter os candidatos a provas “atrás de cortinas”. A justeza da escolha era garantida pelo véu de ignorância, como diria John Rawls. E esta medida foi particularmente bem-sucedida no que diz respeito às mulheres e aos músicos de origem asiática. O problema é que as orquestras continuam a ser predominantemente brancas

Esse será um problema se as razões que conduzem a esse resultado forem económicas. As enormes desigualdades económicas que afetam os Estados Unidos, e que atingem desproporcionalmente os diferentes grupos raciais, podem significar uma limitação do acesso a um lugar de reconhecimento e seria possível tecer medidas políticas que procurassem minorar essas disparidades.

Mas não é esse o modo como o argumento é desenvolvido: uma vez que prevalece a lógica da politização de tudo, sobretudo na ressaca da morte de George Floyd, o que tem sido proposto é a adoção de medidas que garantam o princípio da representatividade-espelho, relegando para segundo lugar a excelência artística. Foi nesse sentido que o crítico de música clássica do The New York Times, Anthony Tommasini, defendeu o fim das audições cegas:

“Para que os músicos em palco espelhem melhor a diversidade das comunidades que servem, o processo de audição deve ser alterado para ter mais em conta os antecedentes e as experiências dos artistas. A remoção da cortina é um passo crucial.”

Já a League of American Orchestras acolheu o princípio de justiça social como orientador da sua estratégia para os próximos anos e tem apoiado financeiramente a adoção de regras e consultores de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) por parte das orquestras. Mas, como diz Kathryn Hougham,

“Surpreendentemente, nem um único objetivo estratégico da organização que influencia a instituição das orquestras norte-americanas tem a ver com o objetivo principal de uma orquestra: criar música bonita.”

Na verdade, de quanto estamos dispostos a abdicar para criar este novo mundo de justiça social?