Nestes tempos de convulsão social em que o racismo presente e a reconciliação de várias nações com o seu passado histórico estão na ordem do dia, a vandalização da estátua do Pe. António Vieira em Lisboa deixou-me particularmente perturbado. Em primeiro lugar, porque o Pe. António Vieira, para além de um dos artífices mais exaltados da Língua Portuguesa, foi um dos grandes pensadores humanistas portugueses, tendo sido, por exemplo, um dos primeiros defensores dos direitos dos indígenas.
Em segundo lugar, porque existe um paralelismo demasiado evidente e perturbador entre a situação política e social atual e a tese fundacional do seu “Sermão de Santo António aos Peixes”, expressa no parágrafo de abertura desta elocução:
“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querer receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!”
O paralelismo torna-se evidente se substituirmos, neste parágrafo, a palavra “pregadores” pela palavra “políticos” e a palavra “ouvintes” pela palavra “cidadãos”. Não é, com efeito, o papel dos políticos a promoção de uma boa organização da sociedade que promova o bem-estar de todos os cidadãos e que evite que o mal-estar e, eventualmente, a “corrupção” se apoderem da sociedade? Em democracia, este papel é ainda mais importante, na medida em que a classe política recebe este mandato diretamente dos cidadãos eleitores através do voto.
Em situações normais, a função da classe política é a de gerir a mudança social, de forma preservar o bem-estar e evitar a corrupção, promovendo as mudanças que são necessárias e conservando aquilo que é útil para esses efeitos. Importa, então, colocar aos políticos a questão que o Pe. António Vieira colocou aos pregadores: e se o sal não salgar? Ou seja, e se a classe política for incapaz de produzir as mudanças que uma sociedade necessita num determinado contexto?
A mudança social pode acontecer de duas formas principais: através de reformas ou de revoluções. A característica das reformas é que processam a mudança social através da intervenção e colaboração de diferentes forças sociais, sob a liderança da classe política que, em termos ideais, coordena e encaminha este processo. Já as revoluções tendem a ser sublevações sociais, por vezes violentas, mas sempre disruptivas da ordem social, que promovem mudanças necessárias para aquela sociedade, independentemente e, normalmente, contra a classe política dominante, porque esta se opõe ativamente à mudança, ou porque é incapaz de a processar pela via reformista. Esta incapacidade pode assumir inúmeras formas (incompetência da classe política, bloqueios sistémicos, pressões exógenas, entre outros e qualquer combinação destes), mas os efeitos serão invariavelmente os mesmos.
Olhemos agora para a situação atual. Desde há duas semanas que nos Estados Unidos da América temos vindo a assistir a algumas das maiores manifestações contra o racismo sistémico e institucionalizado que existe naquele país, sob a égide do movimento #BlackLivesMatter. Associado a este movimento, têm ressurgido igualmente vozes que apelam à necessidade de reconciliar a nação americana com a sua história, de modo a exorcizar certos mitos (nomeadamente, o movimento de romantização da Confederação em plena era de Jim Crow) que são obstáculos a uma real solução para o problema do racismo sistémico e institucionalizado naquele país. Estes mitos, meias verdades e completas mentiras acerca da história de uma nação são uma das principais causas da natureza institucionalizada e sistémica do racismo que se vive em vários países. Estas manifestações e movimentos têm encontrado eco em vários países deste lado do Atlântico, incluindo em Portugal.
Não cabe aqui discutir a bondade de alguns dos meios que os manifestantes, nos diferentes países, têm utilizado para trazer estes temas ao debate público. Podem, inclusivamente, alguns deles ser vistos como um sinal de que a “corrupção” já entrou na sociedade. Por isso, interessa essencialmente perguntar qual tem sido a resposta dos “pregadores”. Dentro da classe política americana, apesar de algumas vozes se terem levantado a pedir mudanças estruturais e de algumas dessas vozes se terem de facto comprometido a fazê-lo (veja-se a decisão do Município de Minneapolis de dissolver o atual departamento de polícia e de criar novos mecanismos de segurança pública, sensíveis ao problema do racismo sistémico e institucionalizado), a resposta das mais altas instâncias dessa classe política tem sido a da simples negação do problema, da repressão das manifestações com ainda mais atos de brutalidade policial e da demonização daqueles que se manifestam em favor destas mudanças, generalizando alguns atos de violência perpetrados por alguns oportunistas e atribuindo-os às manifestações que têm sido, na sua esmagadora maioria, pacíficas. Também em Portugal, temos ouvido da classe política vozes que negam o problema, ou, mesmo que não o neguem abertamente, nada fazem (e estando em posições de o poder fazer) para desenvolver e coordenar um programa de reformas que fale ao desejo de mudança social que vemos nas ruas.
O desejo de mudanças sociais, que lidem com o flagelo do racismo sistémico e institucionalizado, está na rua um pouco por todo o mundo ocidental. Quando assim é, a via reformista é sempre a mais desejável, na medida em que promove uma mudança social pacífica e o menos disruptiva possível da ordem social. Mas as reformas exigem liderança ativa e capaz das classes políticas. O corpo político fala, mas a classe política não o ouve, nega o problema, e escusa-se a cumprir a sua função: a de salgar a sociedade, para evitar que nela entre a corrupção. E o que se faz ao sal que não salga? De novo nos responde o Pe. António Vieira:
“O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus (Mateus V-13). Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado de todos.”
Quando a reforma é impossível, a revolução é inevitável. Se a vandalização da estátua do Pe. António Vieira chocar tanto a classe política quanto me chocou a mim, será então altura de a classe política seguir a sugestão deste genial artesão da Língua Portuguesa e insigne humanista e começar a olhar mais para si própria e perceber que a “corrupção” da sociedade talvez seja culpa do sal que não salga.