No final do seu discurso na noite eleitoral catalã do passado domingo, Pere Aragonés, candidato do partido pró-independência Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), deixou uma mensagem a Pedro Sanchéz e, por extensão, ao Estado espanhol: “É hora de nos sentarmos e vermos como vamos resolver isto [a questão da autodeterminação da Catalunha], votando num referendo”. As manchetes sobre a primeira dupla maioria absoluta (de votos e de mandatos) de partidos pró-independência na legislatura da região autonómica da Catalunha trouxeram a questão da autodeterminação catalã de novo ao centro do debate político. Mas, escondida nas entrelinhas, encontramos uma situação mais complexa do que aquela que os partidos pró-independência catalães proclamaram na noite de domingo e que exige algumas cautelas.

O apelo à negociação de Pere Aragonés evoca um exemplo bastante rico e consequente de uma semelhante pretensão separatista já com mais de duas décadas: a questão do Québec. Depois de um referendo falhado em 1995, com uma taxa de participação de 93,52% e em que o “Não” venceu com uma diferença de cerca de 50 mil votos (1,16%), o Supremo Tribunal canadiano recebeu um pedido de parecer consultivo do governo canadiano em que lhe era questionado, em suma, se o Québec poderia unilateralmente separar-se do Canadá, nos termos do Direito Constitucional canadiano e do Direito Internacional.

Para a maior parte dos analistas àquela data, a resposta seria clara: em regra, a secessão e um eventual direito à secessão são questões extra-constitucionais, isto é, que existem fora da legalidade constitucional e que, na opinião de Cass Sunstein, não deveriam ser constitucionalmente contempladas1. As poucas exceções encontram-se em ordens constitucionais como a da Etiópia, Jugoslávia e União Soviética (que continham cláusulas expressas sobre o direito à secessão) e dos Estados Unidos da América (em que uma decisão do Supremo Tribunal considerou a secessão como proibida pela Constituição2). No domínio do Direito Internacional, a opinião prevalecente era (e ainda em parte é) a de que a secessão unilateral, fora do contexto específico da descolonização, era essencialmente uma questão de facto, não regulada diretamente pelo Direito Internacional, mas cujos efeitos poderiam, mediante reconhecimento livre por parte dos outros Estados da comunidade internacional, eventualmente ser incorporados na ordem jurídica internacional3. A única exceção seria uma eventual secessão corretiva, hipótese que apenas teria lugar em circunstâncias de violações graves de Direito Internacional. O Parecer Consultivo do Tribunal Internacional de Justiça em relação ao Kosovo (2010) é um excelente exemplo destas manobras evasivas do Direito Internacional em relação à questão da secessão, uma vez que o Tribunal concluiu que as declarações de independência unilaterais não são, formalmente, incompatíveis com o Direito Internacional, mas nada disse sobre o direito (substantivo) à secessão. A secessão era, assim, uma espécie de no man’s land jurídica, quer em termos constitucionais quer em termos jusinternacionais.

Na sua notável decisão de 19984, o Supremo Tribunal canadiano quebrou o tabu jurídico em relação à secessão e articulou a mais moderna leitura jurídica deste problema. Especialmente na sua leitura do Direito Constitucional federal canadiano, o tribunal chegou a uma conclusão matizada, mas convincente. Por um lado, o tribunal considerou não existir um direito à separação “unilateral” de uma província. Contudo, uma leitura sistemática de “princípios não-escritos” da Constituição canadiana (federalismo, democracia, rule of law e proteção das minorias) levou o tribunal a concluir que uma “expressão clara por uma maioria clara” de pretensões secessionistas por parte do povo de uma das províncias do Canadá daria, no mínimo, origem a um dever constitucional do Estado canadiano de negociar de forma “substantiva” com as autoridades da província em relação a essa questão.

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Esta decisão histórica do Supremo Tribunal canadiano trouxe um novo fôlego à discussão académica sobre a questão da secessão, quer em termos de Direito Constitucional, quer em termos de Direito Internacional, bem como aos movimentos independentistas um pouco por todo o globo. O apelo dos partidos independentistas catalães neste domingo à negociação parece ecoar as conclusões do Supremo Tribunal canadiano. Contudo, depois da euforia de domingo, é preciso olhar com algumas cautelas para o contexto político e jurídico dos resultados eleitorais, usando como matriz precisamente esta decisão do Supremo Tribunal canadiano. Uma das grandes virtudes desta decisão é a de ser extremamente exportável, na medida em que é fundada em princípios constitucionais que podem ser facilmente encontrados noutras ordens constitucionais, nomeadamente a espanhola. Em especial, note-se que o federalismo, mais do que uma realidade binária (existe ou não), deve ser compreendido como um espectro de soluções políticas e jurídicas de acomodação de autonomia política e proteção de minorias no seio de um estado plurinacional e multicultural, no qual se insere a solução das comunidades autonómicas da Constituição espanhola. Em particular, é possível identificar imediatamente duas cautelas importantes.

A primeira maioria absoluta de votos em partidos independentistas no parlamento catalão está a ser proclamada como um mandato claro para a independência da Catalunha. Ainda assim, existem alguns elementos do contexto político deste resultado que colocam dúvidas sobre se estes podem ser verdadeiramente qualificados como uma “expressão clara por uma maioria clara”. Em primeiro lugar, este resultado refere-se a eleições para a constituição do parlamento catalão e não sobre a questão específica da independência, o que dilui leituras sobre a intencionalidade do voto em relação à questão da independência. Em segundo lugar e em complemento ao primeiro ponto, esta maioria é composta por uma coligação de partidos diferentes (o ERC, o Juntos pela Catalunha e a Candidatura de Unidade Popular), o que fragmenta ainda mais leituras sobre a intencionalidade do voto pró-independência. Uma leitura mais fina dos resultados mostra também um crescimento claro (e vitória) do Partido Socialista da Catalunha (constitucionalista) e um decréscimo da expressão relativa do ERC. Finalmente, este ato eleitoral ficou marcado por uma queda significativa da participação eleitoral (cerca de 20%). Esta queda é explicável pelo contexto pandémico, mas, quando conjugada com os outros elementos referidos, este contexto político dificilmente abona a uma leitura que queira extrair destes resultados uma “expressão clara por uma maioria clara” em relação à questão independentista.

Ainda que fosse possível fazer essa leitura, a consequência defendida pelo Supremo Tribunal canadiano e a que apelam os partidos independentistas catalães é a do início de negociações sobre a questão. Ora, o dever de negociar é naturalmente distinto e incompatível com o dever de assumir um resultado específico, nomeadamente a independência. Outras soluções podem e devem ser contempladas, tais como novos acordos de autonomia e de arranjo e partilha de poderes constitucionais entre o Estado espanhol e a Comunidade Autónoma da Catalunha. Se os partidos pró-independência (assumindo que conseguirão nos próximos dias formar um governo de coligação) entrarem num processo negocial com o Estado espanhol com o intuito de aceitar como única solução um referendo à independência e recusando contemplar quaisquer outras alternativas, não parece que isso possa ser considerado como uma negociação “substancial” em relação à questão da independência e entra no domínio da unilateralidade, juridicamente difícil de enquadrar.

Mais do que um direito simples e direto, o princípio internacional da autodeterminação externa e o seu paralelo constitucional da secessão são mais bem compreendidos como um processo político e jurídico. Tal como qualquer processo, este é altamente dependente do contexto e das circunstâncias históricas, políticas e jurídicas da sua tramitação. O exemplo do Québec pode servir de modelo para olhar para os resultados históricos das eleições de domingo passado na Catalunha e o renovado debate sobre a questão da autodeterminação daquela comunidade autonómica. Mas o entusiasmo da manchete não pode mascarar as cautelas que o contexto impõe.

[1] Cass R. Sunstein, Constitutionalism and Secession, The University of Chicago Law Review 58 (1991): 633–70.

[2] Texas v. White, 74 U.S. (7 Wall.) 700 (1869)

[3] James Crawford, State Practice and International Law in Relation to Secession, British Yearbook of International Law 69 (1999): 85–117.

[4] Reference Re Secession of Quebec, [1998] 2 SCR 217.