A divulgação do recente Relatório sobre “O Estado da Nação e as Políticas Públicas” da autoria do Instituto de Políticas Públicas e Sociais do ISCTE, o qual revelou uma descrença generalizada dos portugueses no seu sistema de Justiça, constitui um motivo muito sério para os decisores políticos e legislativos arranjarem (finalmente) coragem para atacar (de vez) o estado insatisfatório em que se encontra uma das tradicionais funções soberanas do Estado.
Parece já não haver dúvidas que urge efetivamente efetuar-se a tão propagada reforma da Justiça.
Porém, tal reforma, como muitos parecem querer, não se pode reduzir unicamente ao sector da Justiça Criminal, como se todos os males que afetam o funcionamento do nosso sistema de justiça fossem de índole criminal.
Não negando que há reformas que parecem inquestionáveis realizar neste sector, em particular, no que diz respeito ao reforço das garantias dos direitos fundamentais no processo penal, a realidade é que a verdadeira reforma da Justiça não pode, de modo algum, esgotar-se no domínio do criminal.
Daí que a tão falada e desejada reforma da Justiça não possa ser ditada pelos aspectos mais mediáticos do sistema como é o caso da Justiça Criminal, devendo antes assentar em pontos estruturantes do sistema que possam criar a desejada confiança dos cidadãos quer no funcionamento dos Tribunais quer no acesso aos mesmos e isso, no nosso caso, só poderá acontecer, em parte, por via de uma revisão constitucional, se se actuar sobre os seguintes vectores:
Reforço da Independência do Poder Judicial;
Eficiência no funcionamento do autogoverno da magistratura judicial;
Dignificação da Justiça Administrativa;
Democratização no acesso à Justiça.
O reforço da independência do poder judicial deve começar, desde logo, pela “despolitização” do Tribunal Constitucional, por forma a retirar o peso excessivo que a Assembleia da República detém no que toca à designação dos Juízes do Tribunal Constitucional.
Como é sabido, nos termos do artigo 222º, nº1, da Constituição, o Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República e três coptados por estes.
Ora, a prática tem revelado que um dos últimos redutos do chamado “bloco central” reside precisamente no modo de designação dos juízes para o Tribunal Constitucional, designação esta fruto de um “acordo de cavalheiros” entre os dois maiores partidos políticos do sistema, o PS e o PSD.
Por muito competentes que sejam os Juízes designados pela Assembleia da República, a sua indicação exclusiva por partidos políticos com assento parlamentar, não deixa de ser, aos olhos do público, motivo para desconfiança quanto ao seu distanciamento relativamente a quem os indicou.
É, por isso, absolutamente essencial, até para próprio prestígio do Tribunal Constitucional, ousar “despolitizar”, de uma vez por todas, este Tribunal, o que implica alterar o modo de designação dos seus Juízes a fim de tal designação não ficar excessivamente dependente da Assembleia da República.
Uma tal alteração passa por uma revisão constitucional que modifique o actual artigo 222º da CRP, permitindo-se, assim, que a eleição dos Juízes do Tribunal Constitucional seja não só alargada a outro órgão de soberania, o Presidente da República, mas igualmente alargado aos Conselhos Superiores da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O reforço da independência do poder judicial passa também por uma reforma legislativa que permita pôr termo às chamadas “portas giratórias“ entre a política e a Justiça.
A independência a que estão sujeitos os Juízes não permite que estes desempenhem cargos ou exerçam funções que possam afetar essa mesma independência.
Não é admissível que os Juízes possam ser chamados a integrarem governos como Ministros ou Secretários de Estado e depois regressarem tranquilamente ao mundo dos Tribunais como se nada se tivesse passado.
Um Juíz, uma vez governante, não pode voltar aos Tribunais porque fica irremediavelmente afectado na sua independência por via da sua associação a um determinado governo de certa cor política.
Urge assim fazer as reformas legislativas que se afigurarem necessárias no domínio do Estatuto dos Magistrados Judiciais para impedir que os Juízes possam ser membros de Governos ou exerçam outros cargos de natureza política.
A independência do poder judicial assim o exige.
Prosseguindo, cabe aqui questionar se numa lógica de eficácia do funcionamento do chamado autogoverno da magistratura judicial, fará sentido continuarem a existir dois Conselhos de gestão e disciplina dos Juízes – o Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais?
Porque estamos a falar de magistrados judiciais que estão abrangidos por um único estatuto, fará sentido diferenciá-los só pelo facto de uns exercerem funções nos Tribunais Judiciais e outros nos Tribunais Administrativos e Fiscais?
Não pondo em causa que devem continuar a existir Tribunais Judiciais e Tribunais Administrativos e Fiscais com as suas instâncias de recurso próprias, parece-nos que a eficiência e a gestão dos próprios recursos do Estado ficariam ganhar com uma fusão dos actuais Conselhos Superiores da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais num único Conselho e cujo Presidente deveria ser um Juíz-Conselheiro eleito pelos seus pares e não o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou o Presidente do Supremo tribunal Administrativo, ficando assim assegurada a independência deste Conselho relativamente quer ao STJ quer ao STA.
Uma tal fusão obrigaria a que numa futura revisão constitucional se procedesse à alteração do actual artigo 218º da Constituição de modo a alojar aquilo que poderia vir a ser designado por Conselho Superior da Magistratura Judicial.
Como inicialmente foi dito, a Justiça Criminal, por ser a mais mediatizada, não pode servir de justificação para que, em termos de reforma do sistema de jsutiça, à mesma venha a ser dada toda a atenção por parte do poder político e do legislador, quando o sector mais fraco do nosso sistema de justiça a necessitar urgentemente de reformas é, desde há muito, a Justiça Administrativa e Tributária.
Não é possível continuar a assistir à grave situação em que se encontra a Justiça Administrativa e Tributária.
Não é possível continuar à espera de uma sentença judicial em 1ª instância seis ou sete anos depois da entrada de uma ação em juízo.
E se lhe juntarmos mais três ou quatro anos em sede de recurso, é inaceitável que só ao fim de 10 ou 11 anos é que se faça Justiça, mas, nessa altura, Justiça tardia já deixou de ser Justiça.
Os terríveis atrasos que caracterizam o funcionamento da Justiça Administrativa e Tributária são verdadeiramente exasperantes para os cidadãos e para as empresas que se vêm envolvidos em litígios com o Estado e com a Administração Pública em geral.
Há quem diga que o próprio Estado, por razões óbvias, tem pouco interesse em robustecer a Justiça Administrativa e Tributária.
Pelo nosso lado, não acreditamos em “teorias da conspiração” contra a Justiça Administrativa e Tributária, mas lá que o Estado ainda não a dotou dos meios próprios para lhe conferir eficiência e rapidez na resolução dos litígios jurídico-administrativos e jurídico-tributários, isso, é uma realidade.
Porém, a resolução para a grave situação que há muito se vive no seio da Justiça Administrativa e Tributária, em especial, a sua tremenda morosidade, não se resolve, como muitos propõem, com a sua simples extinção.
Isso seria resolver um problema criando um outro problema.
A resolução passará, indiscutivelmente, pelo reforço de meios humanos e materiais nos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Mas o reforço de meios humanos e materiais, por muito importante que seja, não ajudará, por si só, a resolver o drama da morosidade se não for acompanhado por outras medidas que incidam quer sobre o modo de funcionamento do Tribunal quer sobre o modo de trabalhar dos Juízes (e das próprias partes) na tramitação dos processos.
A implementação de um sistema informático de alertas que se traduza em prazos que o Juíz deve cumprir e cujo incumprimento deverá levar à intervenção atempada do Juíz Presidente para impedir a eternização dos processos, poderá constituir uma ferramenta da maior importância na gestão da actividade do Tribunal com o propósito de a Justiça ser feita a “tempo e horas”.
Uma coisa é certa, a Justiça Administrativa e Tributária, no âmbito de uma reforma do sistema de Justiça como um todo, deve constituir uma preocupação prioritária do poder político sob pena de o Princípio do Estado de Direito ser neutralizado pela inoperância dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Um ponto obrigatório da reforma da Justiça é torná-la mais democrática, ou seja, permitir o acesso de todos os cidadãos ao sistema, eliminando as tremendas barreiras económicas que ainda existem e que tanto penalizam os cidadãos que precisam de recorrer aos Tribunais para resolverem os seus problemas de âmbito familiar, laboral, comercial, cível, administrativo e tributário.
Estamos a falar do valor das custas judiciais que há muito se transformou num pesadelo para a maior parte dos cidadãos quando pretendem aceder ao sistema de Justiça.
É hoje reconhecido que o peso das custas judiciais tem vindo a dificultar o acesso da classe média do mundo dos Tribunais, acesso este que só está garantido aos mais ricos ou mais pobres, estes últimos quando beneficiem de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com um processo judicial.
É inadmissível a existência de um sistema de Justiça que só serve os ricos e os pobres.
Daí que seja absolutamente essencial rever radicalmente as custas judiciais por forma a que a Justiça possa ser implementada, tal como a saúde, como um sistema tendencialmente gratuito.
O exercício da Justiça enquanto função soberana do Estado, não pode, nem deve, constituir um “negócio” para o próprio Estado.
Por último, a democratização da Justiça deverá passar ainda por uma pequena “revolução” no regime de proteção jurídica em vigor.
A criação de um “Instituto Nacional de Acesso ao Direito” como instituto público integrado na administração indireta do Estado, resultante de uma colaboração entre a Ordem dos Advogados e o Ministério da Justiça e cuja missão estatutária seria disponibilizar à população economicamente carenciada um corpo de advogados selecionados por via da sua experiência e motivados pelo pagamento de uma avença mensal justa (já que não seriam funcionários públicos mas profissionais liberais afetos ao sistema de acesso ao Direito através da celebração de contrato de prestação de serviços com o novo Instituto) iria certamente ser um marco na democratização do nosso sistema de Justiça.
Em suma, qualquer reforma do nosso sistema de Justiça não pode ser uma reforma unicamente virada para a Justiça Criminal, tendo antes de ser, para que seja efetivamente uma reforma de todo um sistema que se pretende servir a sociedade em que se insere, uma reforma que, de molde a criar a necessária confiança dos cidadãos no funcionamento dos sistema, reforce a independência do poder judicial, confira eficiência ao funcionamento dos órgãos de gestão da magistratura judicial, eleja como prioridade a dignificação do “parente pobre” da Justiça, a Justiça Administrativa e Tributária e garanta plenamente o acesso de todos os cidadãos aos Tribunais.
Se nos limitarmos a falar em reduzir ou aumentar os poderes do MP no processo penal, sem mais anda fazer, é caso para dizer que não há Justiça que nos valha.