Este é o título de um livro que resultou de um debate promovido pelo Conselho Económico e Social (CES), ocorrido no passado dia 21 de setembro. É um texto essencial para quem se interessar pelo futuro de Portugal. É mais uma peça para um longo acervo, muito desaproveitado, de reflexões para a melhoria do SNS. É tema adequado para um comentário de fim de ano.
Está organizado em partes que se debruçam sobre I) O Estado, mercado e setor social e o papel da regulação, II) O papel dos cidadãos, seus direitos e deveres, III) Financiamento: quem paga? Como e quando? e IV) Melhorar a gestão do SNS, com análise dos recursos humanos a quem se augura, desde logo, o papel essencial. Cada um destes temas, depois de uma apresentação temática a cabo de conferencistas, foi alvo de comentários que também foram transcritos para a súmula publicada.
Teria sido mais fácil, como é mais frequente, descartar possíveis soluções com aplicação atual e projetar tudo para um dia incerto. Não é o caso deste livro. Os comentários, principalmente estes, atrevem-se a ser mais do que simples bitaites de comentador e vão mais longe, ao aventarem possíveis intervenções, desde já equacionáveis e passíveis de implementação.
Logo na introdução, o Prof. Correia de Campos resume, em poucas palavras, o elemento central da discussão que todos concordam ser urgente, mas que ninguém quer ter: ”ninguém defende a sua (refere-se ao SNS) manutenção nos exatos termos em que ele hoje se encontra”. Impossível discordar.
Ao contrário, é evidente que não posso concordar, por razões muito mais factuais do que emocionais, com o texto de abertura do Prof. Adalberto Campos Fernandes, quando se reporta ao período decorrente entre 2011 e 2015, em que, no dizer do autor, terão existido “nefastas consequências no desempenho e qualidade das resposta do SNS”, omitindo que a crise, a última em termos cronológicos, ocorreu a partir de 2008 e que a mesma crise ainda tem efeitos que se fazem sentir, agora mais do que nunca, sobre a saúde dos Portugueses.
A ministerial abertura da conferência, no estilo que marca todos os governantes sem exceção – não me eximo da minha parte –, acabou por ser muito mais um texto laudatório das virtudes de um governo – o seu — do que o elencar de problemas que nenhum governo, mais uma vez sem exceção, conseguiu resolver de forma consequente e perene. No entanto deixou-nos uma visão histórica, que o próprio autor irá certamente rever e aprimorar. No caso do mais recente ex-ministro da Saúde louva-se a passagem de “somos todos Centeno” para “falta investimento” na Saúde. Nada inesperado. Todos nós, os que passámos pela governação, ficámos mais lúcidos depois de abandonar funções.
Digamos que o maior problema de toda a governação da saúde tem sido a procura sistemática da sustentação do SNS no imediato, sem poder cuidar da sustentabilidade. O governo e a gestão do SNS tem sido maioritariamente, desde a sua fundação, a constante resolução de crises que se sucedem, inevitavelmente. Tem sido, para todos os que já passaram nos escritórios da João Crisóstomo, um exercício de urgências, por vezes de emergências, aqui e ali interrompido por bonanças transitórias que apenas servem para antever, nem sequer preparar, o embate seguinte.
Contudo, apesar das enormes dificuldades que todos sentem no seu dia-a-dia, o SNS tem provado, tem tido capacidade de adaptação, e a prova são os resultados de saúde medidos e objetivamente melhores em cada ano que passa, mesmo durante os “nefastos” – aproveito a expressão – anos da Tróika, os tais com que o PS nos brindou e sobre cuja solução tive a honra de poder trabalhar.
O estado do SNS, provavelmente bem melhor do que nos querem fazer acreditar em cada momento, sejam as oposições – em particular quando é de esquerda -, os meios de comunicação social ou as opiniões avulsas de casos isolados, mas seguramente pior do que os governos e governantes imaginam, precisa de cuidados contínuos e de aperfeiçoamentos constantes.
A saúde não é um direito. Antes fosse. Apenas podemos almejar o direito à proteção da saúde, como a Constituição garante. Infelizmente, a nossa natureza biológica e a segunda lei da termodinâmica impõem-nos a mortalidade e, naturalmente, ninguém morre por estar saudável. Logo, o Estado não pode garantir o direito de nunca adoecer, mesmo que a doença possa apenas durar os segundos que antecedam a morte. Mas todos nós temos o direito de exigir que a nossa vida e a nossa saúde sejam protegidas, tal como temos o dever, também previsto na Constituição, de tudo fazer para nos mantermos saudáveis e proteger a saúde daqueles com quem compartilhamos o espaço e o tempo.
Nada é potencialmente mais instável do que o estado da Saúde de uma população. As condições sociológicas, técnicas, de recursos humanos, todas as envolventes, sejam elas económicas, financeiras, ambientais, demográficas, comunicacionais, estão sempre em evolução. A verdade é que temos transformações de que resultam necessidades e exigências que o desencontro entre as condições financeiras do País e as expectativas dos stakeholders tornam difícil de resolver com uma resposta única, por um lado, e duradoira, por outro.
Dito isto, sem descurar a óbvia necessidade de se manter uma discussão filosófica e, como tal, política sobre o futuro do SNS, parece-me que há um conjunto de pressupostos que nos deveriam permitir, a todos, a toda a sociedade, discutir e combinar soluções pragmáticas que respondam ao principais desígnios, indiscutíveis, para a saúde em Portugal.
- O acesso universal a cuidados de saúde,
- O combate às desigualdades em toda a sociedade, como motor da promoção de melhor saúde,
- A diminuição da carga de doença e o consequente aumento da longevidade saudável,
- A sustentabilidade técnica, estrutural, humana e financeira do SNS para as próximas décadas.
Quase ninguém questiona a necessidade de haver SNS. Não quer isto dizer que o atual modelo de financiamento e prestação, idealizado em meados do século passado, não posso estar já desadequado à realidade de hoje e até possa vir a ser gradualmente substituído por um outro, idealizado nos finais do século XIX. Refiro-me, obviamente, ao confronto entre Beveridge e Bismarck, em que o segundo parece estar a ganhar vantagem ao primeiro, quando se avalia qualidade de prestação, sustentabilidade financeira e satisfação dos utentes. É verdade que uma solução portuguesa, já composta por uma mistura que abrange seguros privados e públicos, além do SNS, tem sido “suficiente”, até agora, para garantir acesso universal e quase geral. Mas tem sido apenas “suficiente”, com grandes desigualdades territoriais e tempos de espera incomportáveis, face a uma população mais carente, exigente e necessitada. A hotelaria das instituições de saúde do Estado é deplorável na maioria dos casos, sendo pior em Lisboa, a capacidade instalada é insuficiente, os recursos humanos e financeiros são escassos. Para a reposição dos níveis de excelência e qualidade a que todos temos direito, para um SNS verdadeiramente universal e geral, é preciso ir fundo nas reformas. Não nos iludamos. Não podemos continuar cristalizados dentro de posições ideológicas imutáveis e compartimentalizadas, quase todas defendidas e repetidas por quem nada percebe do que é a saúde, a doença e a sua prevenção.
Desde logo, porque a sustentabilidade do SNS não pode ser apenas vista do ponto de vista financeiro e porque há questões de intervenção sobre os recursos humanos – a “área mais exigente da gestão em saúde”, como se lê num dos capítulos -, que vão necessitar de redefinição de papéis profissionais e de aproveitamento de competências que ainda esbarram em silos protecionistas, garbosamente defendidos por sindicatos e ordens. Nada será como é e, não estou a falar de ficção científica, o dia virá em que informáticos e engenheiros tratarão – espera-se que bem – de uma parte substancial da nossa saúde. Ou que os médicos serão muito mais informáticos e engenheiros do que já são hoje. Temos de antecipar o futuro, sem que a tecnologia esmague a humanidade dos atos de cuidar, e onde a inovação possa ser incorporada onde seja imprescindível fazê-lo.
Este livro é uma boa base, mais uma, para o diálogo social que tem de ser feito e onde as querelas partidárias, legítimas num regime democrático que não pode dispensar a luta partidária pelo poder, terão de estar num plano diferente daquele que se quer para a discussão e implementação da reforma do SNS. Precisamos de cotejar propostas e não de confrontos entre personalidades.
Volto a citar o Presidente do CES, uma das figuras marcantes na saúde pública em Portugal e, devo dizê-lo, na minha formação como pessoa e profissional de saúde.:
– “O debate sobre o futuro do SNS é um dos mais interessantes temas de políticas públicas, neste momento. O prestígio social e cultural medido em ganhos de saúde que o modelo SNS alcançou em 40 anos, os resultados em equidade social, geracional e geográfica, a dimensão económica que atingiu, tornam o modelo dificilmente questionável”.
Os riscos que pendem sobre o SNS, inexoravelmente agravados por uma maior facilidade de destruição reputacional, facilidade que está escorada em tecnologia e táticas de comunicação a que ainda nos estamos a habituar, precisam de ser JÁ prevenidos.
Como diz o Senhor Presidente da Assembleia da República no encerramento do debate: “Se o SNS até hoje sobreviveu e conquistou a simpatia dos que nele trabalham, se na sua própria génese os profissionais tiveram um papel de grande relevo, qualquer reforma do SNS terá que honrar os que a ele se dedicaram, facultando condições para melhor e mais qualificado exercício profissional. Sem esquecer que o SNS não existe para dar emprego, mas para servir os Portugueses”.
“Servir”, a palavra mágica de que não nos devemos esquecer. Servir é o propósito que deve animar todos os que trabalham para a saúde. Servir é um vocábulo que tem andado esquecido, mas que nos compete lembrar, sempre. Mais ainda quando a justa luta dos profissionais de saúde será ainda mais justa, e compreensível para a sociedade, se o objetivo for servir melhor e nunca prejudicar.
PS. Infelizmente, há um enorme acervo documental do Ministério da Saúde que agora está escondido num domínio www2.portaldasaude.pt, onde é quase impossível pesquisar se não se souber o título do que se procura. Nem sequer abre se não insistirmos. A mudança dos sítios do Ministério da Saúde e das suas agências, operada em 2016, levou a essa “extinção” de informação que, para não dizer mais, é lamentável. É, agora, muito mais fácil encontrar propaganda do que informação. Há informação que que não deveria ter desparecido do acesso fácil na net. Os técnicos, os estudiosos, os políticos e a população agradecerão ao Ministério da Saúde se reverterem esta situação.