A escolha do subtítulo resulta de que o “caso das gémeas” não interessa se Portuguesas, Brasileiras, Espanholas ou Inglesas, serve para ilustrar um dos problemas recorrentes do serviço nacional de saúde (SNS). Até dois, sendo que o segundo é um problema da administração dos serviços públicos e dos políticos que os tutelam.

O primeiro problema é a dificuldade que as instituições do SNS que tratam doentes têm para definir princípios e aplicá-los no que diz respeito à prescrição e administração de determinados medicamentos, geralmente os mais caros, embora se devesse dizer o mesmo dos mais tóxicos ou de aqueles com uma relação de custo/benefício em que o numerador supera o denominador de forma muito expressiva.

O segundo problema é mais tacanho, porventura mais grave na sua perversão, e consiste na subserviência da administração pública a supostas cadeias de comando. Cadeias essas que, no fim do dia, não existem, não se manifestaram, não invocam memórias de interferência, apenas pugnaram pelo cumprimento da lei, não sabem de nada, não conhecem os envolvidos, desconhecem o tema, confundem a resposta a uma suposta reclamação com uma intervenção deslocada, não se surpreendem, nem se arrependem.

Começando pelo fim, o segundo problema, resta apenas desejar que este caso, o das gémeas, sirva para que os políticos possam aprender que o melhor é não se meterem onde não devem, tal como a administração deve estar segura dos princípios que segue e da justeza ética e técnica das decisões que os vários agentes vão tomando.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas é o primeiro problema que mais nos deve afligir. Afinal, no caso concreto, era ou não indicado tratar as meninas com o medicamento que foi usado? Houve ou não alguém que tenha ficado prejudicado pela decisão de administrar o tratamento em causa? Houve benefício, ou há probabilidade de benefício, que justifique continuar a prescrever o medicamento utilizado?

Acreditando na adequação do tratamento, sempre ficamos mais descansados. Poderá ter havido abuso de poder, provavelmente abuso na interpretação do poder, mas o remédio era o mais indicado. Se não era, então há que indagar os motivos por que terá havido uma prescrição, contrária aos princípios da ciência médica, de que resultou a administração do medicamento. A história de que terão tratado sob protesto não me convence, isso não existe. Os médicos, ao contrário de outros irresponsáveis que tendem a sofrer de amnésia seletiva, são sempre responsáveis e passíveis de serem chamados a prestar contas pelas decisões que tomam. Não se justificava usar aquele fármaco, não se administrava o medicamento. Depois de ter ouvido alguns colegas especialistas em neuropediatria, colegas que estimo e sei serem de competência técnica inexcedível, fiquei estupefacto com a suposta cadeia de comando que termina na administração de um tratamento caro e porventura inútil. O que me leva à segunda questão e à antecipação da pergunta seguinte:

  • Se o medicamento é tão pouco eficaz, quais as razões que levam o Estado, o nosso SNS, a aceitar a sua compra por um valor tão elevado?

Terá sido porque desde logo, num contexto político de interferência a partir da Assembleia da República, o INFARMED se sentiu na “obrigação” de aceitar um medicamento de efetividade duvidosa e, dessa forma, prejudicar outros utentes do SNS?

A segunda questão, a do prejuízo de terceiros, é uma das questões fulcrais na decisão de introduzir uma determinada opção terapêutica no SNS e depois usá-la. Qual o custo de oportunidade em causa? Que outras doenças ou outros doentes deixam de ser tratados quando o SNS opta por aceitar pagar um determinado preço por um medicamento? Quais as variáveis que devem estar na equação que ajuda a determinar a justeza do preço a pagar por uma terapêutica? E será ético, para já não dizer tecnicamente sustentável, manter medicamentos de comprovada eficácia e provável efetividade na “gaveta”, aguardando meses ou anos até que o SNS os aceite comprar, enquanto se financiam tratamentos de elevada probabilidade de ineficácia? Ou, voltando ao ponto da efetividade que não comprova a eficácia, justificar-se-á manter na lista dos medicamentos comparticipados os que se demonstrarem, com a experiência de utilização, sem a efetividade esperada?

Ao mesmo tempo que se discute o tema das gémeas, aguçado pelo picante de uma eventual intervenção espúria e desadequada de alguns políticos, surgiu uma outra notícia que nos deve convocar à questão da prescrição de medicamentos de alto custo. Também envolve doentes jovens. Neste caso com uma probabilidade de sobrevivência bem maior do que a das infelizes bebés que vieram do Brasil. O que aqui está em causa é um hospital universitário usar um argumento, ou conjunto de argumentos, para não autorizar um tratamento, supostamente eficaz e indicado, a doentes que são seguidos na mesma instituição. Com a agravante, diz o jornal, de que doentes idênticos já estarão a ser tratados com o tal fármaco muito caro. Aqui, supõe-se, não terá havido “pedidos”, “esclarecimentos requeridos”, “telefonemas a saber dos casos”, “demonstrações de interesse” com a situação clínica dos irmãos, como no caso das gémeas, também afetados por uma doença hereditária.

É este o problema que o SNS tem de resolver e nem será difícil de o fazer. Tem de ter princípios claros, associados ao financiamento necessário, para que se saiba quem tem de ser tratado e pode ser tratado com o medicamento mais indicado para cada situação clínica concreta. E são os médicos que têm de aplicar esses princípios que podem ser linhas de orientação ou até afirmações de lege artis. Tal como deve ser o INFARMED que, devidamente aconselhado, deverá decidir em que condições deve um determinado medicamento ser usado e por que preço. E deve haver quem audite o que é feito e como é feito. Concluindo, é preciso que o Ministério da Saúde garanta que os medicamentos verdadeiramente necessários, úteis, estão sempre disponíveis e com preços que os cidadãos possam suportar, seja por via direta, seja por via do Orçamento de Estado que é feito com os impostos que nos cobram. É indispensável que as pessoas confiem nos médicos, no seu poder de decisão e que estes sejam também guardiães da sustentabilidade do SNS. Precisamos de qualidade. O mesmo que dizer, garantir que os tratamentos adequados cheguem sempre a quem deles necessitar, começando pelos mais necessitados, pelo preço mais baixo e de acordo com as normas da boa prática.

Os casos das gémeas e dos rapazes são, lamentavelmente, provas de que a qualidade nem sempre está presente no SNS. É esse o primeiro problema.

PS. Um pequeno glossário.  Para efeitos de avaliação de medicamentos, falamos de eficácia quando nos referimos aos resultados esperados em contexto de ensaio clínico, com populações selecionadas, e de efetividade quando estamos a referir resultados observados na vida real, em doentes com a patologia da indicação, mas não selecionados por critérios tão estritos como os dos ensaios clínicos. Indicação de um medicamento é a condição ou conjunto de condições sintomáticas ou patológicas onde se espera que esse medicamento exerça um efeito benéfico que desejavelmente supere os eventuais efeitos adversos.