Roubei o título às Great Expectations do Dickens, provavelmente mais bem traduzido como Grandes Expetativas. Parece-me certo afirmar que uma grande parte do eleitorado português não olhará para as eleições legislativas de 10 de março de 2024 com esperanças ou expetativas. Se as tiver, não serão “Grandes”.

Mas vamos ao diagnóstico.

Portugal não está bem. Conhecemos as ameaças internacionais que pairam. Juros ainda altos, guerras em curso, instabilidade política noutros Países. De bom, diz-se que a inflação vai normalizar. Temos os problemas internos identificados. Não há como escondê-los. Com tanto suspeito, arguido e acusado, os eleitores desconfiam dos políticos. Temos quadros que emigram, desemprego a dar sinais de subir, quando, paradoxalmente, há falta de mão de obra. Não temos uma política de imigração coerente e consequente. Há grande carga fiscal que asfixia os que pagam impostos, demasiados pobres que não ganham o suficiente para contribuir, crescimento económico débil e muito dependente do turismo, pouca indústria transformadora e geradora de valor, competitividade apoiada em salários baixos, contestação nos serviços públicos. A justiça é lenta, muito mediática, aqui e acolá com a credibilidade em risco. Há um quadro penal desajustado e as prisões estão ao nível do terceiro mundo. Forças de segurança em protesto, com material de trabalho escasso e mal mantido. Militares a tenderem para o residual e com equipamento a desfazer-se e insuficiente. Escolas sem professores e, ainda pior, com falta de alunos, fruto da diminuição na natalidade. Não há casas para a maioria dos Portugueses que delas precisam. Os jovens ficam nas casas dos Pais, quem os tem. Os sem abrigo aumentam, nacionais e estrangeiros. Vai ser preciso muito dinheiro, esforço, imaginação, cooperação, para que os problemas entrem no caminho da solução. Iremos precisar de entendimentos políticos e não se anteveem facilidades na sua concretização. E, supondo os investimentos públicos e privados que terão de ser feitos, precisaremos de matemática complexa para, num campo em que há mais adivinhação do que dados concretos, casar a redução dos impostos com a previsão de que sobrará dinheiro e vontades para o meter onde seja necessário. No caso da saúde, é ainda mais complicado.

Sabemos que a prestação de cuidados pelo Estado tem falta de recursos humanos, as instalações estão generalizadamente desadequadas para o século XXI, a manutenção do que há é deplorável, faltam equipamentos, há má distribuição e planificação deficiente de serviços, não nos apercebemos de uma estratégia nacional coerente, assiste-se ao aumento significativo e crescente dos tempos de espera por cuidados, falta a articulação eficaz entre os níveis de prestação de cuidados e no contínuo entre saúde e segurança social. São estas as principais dificuldades.

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Mas está tudo mal? Não.

Olhando para indicadores de que não temos razão para desconfiar, já que embora fornecidos por Portugal são usados internacionalmente para efeitos de comparação, há áreas em que o desempenho nacional e os resultados são muito satisfatórios. Já lá vamos, mas o 1º desafio que elenco é o de ser capaz de fazer melhor sem estragar o que já existe. Olhemos para os desafios.

Os principais desafios para a sustentabilidade do serviço e do sistema nacional de saúde, no caso português, relacionam-se, em 1º lugar, com os elevados preços das tecnologias de saúde que usamos, em 2º lugar, com o envelhecimento populacional e, em ligação com o desafio anterior, uma elevada carga de doença, em especial a partir dos 65 anos de idade, em 3º lugar. A estes fatores, presentes nos Países mais desenvolvidos, deve somar-se a crise de recursos humanos, universal, grave em Países mais ricos e gravíssima, agravada pelo brain drain, nos Países mais pobres, e os efeitos ainda presentes da pandemia de COVID-19. Todos conhecemos isto, apesar de haver graus nacionais diferentes de influência dos determinantes “clássicos” como a pobreza, a baixa escolaridade ou o acesso a saneamento básico. Ainda não podemos avaliar, com precisão, todos os impactos futuros de alterações climáticas, mas não nos devemos esquecer de pugnar pela salvaguarda do ecossistema em que vivemos. Logo, em termos simplistas, Portugal precisa de ser mais eficiente na utilização de recursos, pessoas e tecnologias, revertendo a crise de natalidade e combatendo a carga de doença através da promoção da saúde e prevenção das doenças preveníveis.

Em Portugal, a esperança média de vida tem aumentado e a mortalidade, em especial a infantil e até aos 5 anos de idade, embora varie, tem estado dentro de intervalos muito baixos, ao nível do que há de melhor no mundo. Também temos variações sazonais e anuais de excesso de mortalidade, mas ainda nada de alarmante e já indicador de um colapso, palavra pesada e sujeita a interpretações diversas, presente ou eminente do sistema de saúde. O crescimento da população acima dos 65 anos é muito superior ao da média da UE. Contudo e, muito grave, os anos de vida saudável depois dos 65 anos são apenas 47% dos 17,8 anos de esperança de vida, nos homens, e 33% de 21,6 anos, nas mulheres. Na Europa, dados de Eurostat reportando-se a 2020, seriam 55% de 17,4 anos, nos homens e 48% de 21 anos, nas mulheres. Ou seja, os nossos idosos até vivem mais anos, mas vivem uma parte maior desses anos com menos saúde. Muita dessa perda de saúde está associada a fatores individuais como sejam o excesso de peso, a pouca atividade física ao longo da vida, o consumo exagerado de álcool, o tabagismo, a hipertensão e a diabetes. Seria fastidioso elencar todas as estatísticas. Na área da prevenção primária, temos um programa nacional de vacinação gratuito que é dos melhores do mundo e com taxas de cobertura muito altas, com números de 99% em algumas vacinas. Não iremos discutir aqui a questão anual da vacinação para a gripe, mas convirá lembrar que temos um programa gratuito, introduzido nos anos da Tróika, com níveis de adesão satisfatórios, ainda longe do ideal. A adesão à vacinação para o SARS-CoV2 tem vindo a diminuir, infelizmente, até junto dos profissionais de saúde que, com prejuízo deles e das pessoas que atendem, também não aderem à vacinação para os vírus da gripe com o entusiasmo que se deveria esperar de profissionais de saúde. Todavia, durante a pandemia os serviços de saúde pública conseguiram vacinar um número muito significativo de pessoas, 86% de vacinação completa em outubro de 2021.

Até 31 de dezembro de 2023, tivemos 5.634.044 casos registados e 27.764 mortos atribuídos a esta doença. Já com algum recuo, podemos confirmar que o excesso de mortalidade nos anos da COVID-19 ficou sempre a dever-se a outras causas que não a COVID-19. Ou seja, observa-se que do bom trabalho na contenção da mortalidade por COVID-19 resultou um aumento de mortalidade por outras causas, nomeadamente por cancros e doenças do aparelho circulatório.

O número de unidades de saúde familiar tem vindo a aumentar, a oferta privada de cuidados também tem tido tendência crescente, o número de consultas em cuidados primários e em hospitais tem vindo a aumentar, os doentes saídos e os episódios de urgência também. Ou seja, a “máquina” vai produzindo e até produzindo mais atendimentos. Deve salientar-se a relativamente recente e boa decisão de eliminar as taxas moderadoras, tomada por governo do PS. Em termos brutos, os recursos humanos do SNS foram aumentando até 2021, com uma diminuição progressiva desde esse ano, mas ainda com o número de 151.145 trabalhadores até setembro de 2023. Vinte e um por cento destes trabalhadores são médicos e o grupo onde se sente mais falta. Mas temos uma das razões entre médicos e enfermeiros de 1,3, quando a média na OCDE é de 2,5 enfermeiros / médico. Estamos, apesar da gritante falta de médicos no SNS, em especial nas especialidades críticas para o atendimento urgente e de cuidados primários, no grupo comparativo de Doctors High, Nurses Low e temos de ser capazes de formar mais enfermeiros e conservá-los em Portugal, idealmente no SNS.

A despesa em saúde tem vindo a aumentar. Em 2022 era 10,6% do PIB, 6,97% de despesa pública e 34,2% do total da despesa era suportada pelos contribuintes, a maioria sujeitos a um fenómeno de dupla tributação, por cima do IRS, IVA e tudo o resto. Os números variam consoante as fontes, mas pode dizer-se, com segurança, que há quase 1,3 milhões de contribuintes para a ADSE e mais, estimados, 2,5 milhões de pessoas residentes em Portugal com um seguro privado de saúde. Todavia, a despesa corrente em saúde per capita ainda está abaixo da média europeia e segue no pelotão dos mais pobres. No que se relaciona com prevenção das doenças, Portugal gasta apenas 3% de toda a despesa corrente em saúde, o 7º País a contar do fim entre os 38 membros da OCDE.

O preço dos medicamentos tem vindo a aumentar e a sentir-se no bolso de quem paga, seja o Estado, sejam os clientes individuais. É o preço dos medicamentos que se usam em hospitais que mais têm aumentado, nem sempre com correspondência entre o aumento de preço e ganhos de valor, sejam em sobrevivência ou qualidade de vida, para quem os toma. Mas o custo médio de medicamentos prescritos em cada consulta em centros de saúde tem vindo a aumentar, em particular naquilo que os utentes pagam, até porque a quota de genéricos, em termos de embalagens prescritas, apenas passou de 30,1% em 2017 para 34,2% em 2021. Exige-se mais dos médicos, enquanto prescritores e educadores. É certo que a dívida hospitalar anual à indústria farmacêutica, a remanescente depois da habitual injeção de fundos que o ministério das finanças faz no fim do ano, tem vindo a diminuir, mas o declive da curva de crescimento mensal dessa dívida continua em torno dos 70 a 80o, medidos a olho. Ou seja, há uma capacidade negocial que o Estado não usa por preferir pagar tarde e aceitar um juro implícito no preço dos medicamentos hospitalares. Naturalmente, o ângulo da linha de crescimento é influenciado pela entrada de novos medicamentos, nem todos inovadores, com preços cada vez mais altos.

A remuneração dos médicos foi alvo de melhorias no início deste ano. Apesar de podermos contestar a forma como o diploma da dedicação plena foi promulgado e não devidamente acordado com os sindicatos, a verdade é que houve aumentos da ordem dos 30 a 35% sobre os salários anteriores, com contrapartidas de trabalho facilmente cumpríveis. A dedicação plena é apetecível para a maioria dos médicos e seria bom que as administrações das ULS se apressassem a conceder o regime a TODOS os médicos que o solicitarem. Não o fazer será um erro monumental.

Mas os bons indicadores, como sejam os referentes à longevidade, a internamentos evitáveis, onde estamos bem posicionados, ou os de incidência e prevalência de algumas doenças não medem satisfação. E a população está insatisfeita. Uns porque pagam seguros complementares sem a devida redução de massa tributável ou de imposto em sede de IRS, outros porque esperam e desesperam por cuidados a que têm direito. O número de utentes sem médico de família, mesmo só considerando os residentes que querem médico no SNS, deve ser superior a 1,2 ou 1,3 milhões de potenciais utilizadores. E nos hospitais do SNS há quem espere mais de 2 anos por uma cirurgia, apesar da média global do tempo de espera estar novamente a diminuir depois dos anos da pandemia, ou por uma consulta e, depois de ter sido observado uma vez, mais de um ano por segunda consulta, sem que a boa prática médica sustente esse intervalo entre observações médicas. Há áreas de cuidados especializados, como a da transplantação de medula que conheço bem, onde os números de doentes em espera e por demasiado tempo é inaceitável. Tal como os estrangulamentos resultantes da dificuldade de acesso a meios complementares com imagem, radiografias, ressonâncias, ecografias, bloqueiam toda a cadeia de cuidados sequenciais. A grande viragem dos cuidados de internamento para ambulatório não teve, nem terá, a repercussão que se esperaria. O SNS tem falta de capacidade de internamento, ainda maior em áreas de elevada especialização. Todo o sistema de saúde está carente de camas para cuidados intermédios ou continuados, temos uma rede de reabilitação deficitária, grandes falhas no apoio domiciliário, apoios paliativos e em fim de vida quase só residuais.

Mas o mais preocupante é a diferença, entre ricos e pobres, no que concerne a percentagem de pessoas reportando necessidades médicas não satisfeitas. Embora melhor do que Países como a Grécia ou a França, no que diz respeito à generalidade dos cuidados, estamos pior do que a média Europeia em termos de desigualdade no acesso a cuidados de saúde entre os mais ricos e os mais pobres. Na saúde oral é bem mais complicado, com Portugal num terrível terceiro pior lugar no que diz respeito à perceção da desigualdade no acesso a cuidados dentários, depois da Grécia e da Letónia.

É neste dificílimo cenário, embora ainda com um terreno em que pode ser possível implementar medidas corretivas, que o próximo ministro1 da saúde vai ter de trabalhar. Considerando o cenário atual, nas próximas partes das “Esperanças” irei apresentar a minha visão, estritamente pessoal, do que deverá ser feito e de como deve atuar o próximo e corajoso ministro da saúde. É nesse quadro de perspetiva pessoal que poderão ligar estes textos a outros que já tiveram a gentileza de publicar neste Jornal, nomeadamente aquele em que referi um conjunto de ilusões que assolam o pensamento sobre saúde.

1) Nada implica que o próximo governante tenha de ser do sexo masculino e sff tenham a bondade de aceitar que na Língua Portuguesa o genérico género masculino não impede que a população tenha, necessariamente, pessoas de dois sexos.