As Medidas.

Com um olhar de índole privada e com o conhecimento que fui adquirindo ao longo de quase 40 anos de trabalho no SNS, desde logo remeto o que vier a seguir para quatro pontos essenciais e já enumerados em “opiniões” anteriores.

  1. O que está postulado na Constituição, salvo no que envolve a impossibilidade de impor internamento ou isolamento por risco de propagação de doença infeciosa, é suficiente para tudo o que tem de ser melhorado legislativamente.
  2. Esse mesmo postulado, em particular no que se refere ao direito à proteção da saúde e à existência de um SNS, deverá ser o ponto de consenso político entre os Portugueses.
  3. Todavia, o ponto anterior não nos liberta de repensar o significado de “universal”, “geral” e “tendencialmente gratuito”.
  4. A revisão administrativa que o último governo socialista decidiu aplicar, nomeadamente a criação de um diretor executivo para o SNS e a transformação da quase totalidade dos hospitais e ACES em unidades locais de saúde, está errada na forma, no momento, na abrangência, no quadro legal publicado e não poderá cumprir com os objetivos anunciados se não forem feitas reformas, verdadeiras modificações funcionais, e aplicadas medidas que elencarei como obrigatórias e para cumprir até ao fim dos dois primeiros anos de governo.

O título, que deve ser entendido como a falta de esperança que se pode intuir da leitura da 1ª parte, assenta na falta de vontade de reformar. Essa falta de querer mudar percebe-se e pressente-se em tudo o que se vai ouvindo e lendo ao longo desta campanha eleitoral. Há um enorme conservadorismo generalizado, uma sensação de acomodação ao status quo da política de saúde em Portugal. Apresentam-se medidas que pretendem solucionar o agora, provavelmente sem o fôlego necessário para conseguir remedeio ou remédio, com pensos mitigadores de problemas que recorrerão no imediato ou passado pouco tempo. Almeja-se, em linguagem oncológica, um prolongamento da sobrevivência sem progressão, em vez de procurar a cura.

Desde logo porque o estado de saúde da população não é apresentado como um motor económico, esquecendo que são as pessoas que fazem a economia, e quase nunca se entende a melhoria da situação económica e financeira como um meio indispensável para a melhoria e conservação do bem-estar individual e populacional.

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Além do mais, a realização de um acordo de regime entre os partidos com assento na Assembleia, muito graças à falácia da “descrispação” que nos quiserem impingir como a bênção da coligação de esquerda, é agora altamente improvável.

Dito isto, irei apresentar as medidas partindo das que me parecem ser de necessidade imediata, indispensáveis para todo o edifício do sistema de saúde que tem de ser modernizado e adaptado aos tempos atuais e projetar-se no futuro.

É preciso assinalar mais uns pontos antes de passar à apresentação do conjunto de propostas.

Não esperem nada de muito diferente do que tenho vindo a escrever nos últimos anos, mas não se admirem se o meu pensamento tiver evoluído. É muito natural que haja programas partidários que incorporem algumas destas ideias. Não pretendo ser original, não fui o único a ver o óbvio. Mas o que a seguir escreverei não é um programa partidário, não é uma crítica a nenhum programa entretanto apresentado, nem pretende ter a arrogância de ser tudo e apenas o que tem de ser feito.

Vinte medidas prioritárias:

1 – A medida estruturante mais importante será a criação de um mecanismo de comunicação eficaz de um processo clínico pessoal, com toda a informação guardada em registo eletrónico, universalmente acessível a quem o utente quiser facultar a informação, permanentemente disponível no seio do SNS ou para os operadores de saúde a quem cada um entregar a proteção da sua saúde.

2 – Rever e manter atualizados os equipamentos informáticos, soft e hardware, à disposição dos trabalhadores do SNS. Garantir assistência técnica permanente e eficaz. Naturalmente, em linha com o 1º ponto, assegurar comunicações e transmissão de dados entre as instituições de saúde sem falhas, com débito suficiente para que toda a informação necessária seja transmitida, incluindo imagens com boa resolução.

3 – Na sequência da medida anterior, e antes mesmo de estar completada, facilitar os processos de referência dentro do SNS, reformulando os processos da “Consulta a Tempo e Horas (CTH)” e do SIGIC, permitindo o acesso dos utentes a meios complementares de diagnóstico em todo o sistema de saúde sempre que o SNS seja incapaz de responder em tempo útil.

4 – Rever os atuais tempos máximos de resposta garantida e substituí-los por tempos clinicamente aceitáveis, desde logo criando mecanismos de referenciação a partir do SNS para onde a resposta, com qualidade assegurada, tiver sido contratualizada. Voltarei a este ponto mais tarde, desde já declarando que a minha proposta não é a de criação de programa avulsos de resposta pontual a emergências resultantes da falência na capacidade de resposta, mas uma intenção de reformar todo o modus operandi da garantia constitucional de proteção da saúde.

5 – Corrigir imediatamente o programa de prescrição eletrónica de medicamentos, entretanto estragado pela Direção Executiva, eliminar o atual sistema de juntas médicas, redundantes e consumidoras de tempo e recursos, simplificar tudo o que tem que ver com avaliações de incapacidades, dando autonomia aos médicos do SNS para tomarem decisões.

6 – Reformular o quadro legal que gere a contratação de pessoal no SNS, criando um conjunto autónomo de lei unificada, em vez da sucessão de decretos, portarias e despachos de validade variável que têm gerido esta parte essencial, a mais importante, a dos recursos humanos. As leis gerais não se aplicam a recursos humanos com diferenciações específicas. É absurdo regular horários, por exemplo, seguindo princípios iguais para todo o funcionalismo público e para todos os trabalhadores, independentemente daquilo que é suposto fazerem. E poderia estar aqui a escrever muito mais sobre isto.

7 – Rever o modelo de retribuição de profissionais de saúde que ainda existe, o que só será verdadeiramente possível se houver autonomia institucional para a contração dos quadros da saúde nos serviços públicos. Há demasiados entraves de natureza global, nas leis de contração de funcionários públicos e nos sucessivos acrescentos de protocolos e acordos com sindicatos, para que se possa chegar a regimes de trabalho com um sistema retributivo adequado às necessidades do SNS.

8 – Melhorar as condições salariais dos dirigentes intermédios e superiores na administração da saúde, incluindo os gestores das instituições prestadoras de cuidados. Só com condições de atração de quadros diferenciados e muito competentes, criando uma administração pública forte, podemos ambicionar reformar e manter o SNS como base do sistema de saúde. Os governos são, ainda bem, efémeros e tem de ser na administração pública, independente e despartidarizada – o que é muito diferente de apolítica – que tem de repousar a garantia de continuidade e sucesso das políticas públicas.

9 – Formar e capacitar todos os profissionais de saúde para a solução atempada e idealmente local dos problemas relacionados com a proteção da saúde, numa perspetiva de intervenções holísticas, não exclusivamente médicas, e com eficiência maximizada. Terá de haver transferência da atribuição de graus diferenciadores de competências profissionais para as Ordens profissionais. Na gestão das carreias, o ministério da saúde não deve ser quem atribuí “graus” ou “títulos”. O ministério da saúde deve providenciar acesso a formação e ser contratador de quem precisa, com as qualificações necessárias, mas não deve continuar a consumir recursos em tarefas que são tipicamente das Ordens. Ao mesmo tempo, deve substituir o atual sistema de concursos públicos nas EPE por mecanismos generalizados de contração simplificada, em que a responsabilidade da escolha dos profissionais incida totalmente sobre os Conselhos de Administração.

10 – Na continuação da medida anterior, conceder verdadeira autonomia às EPE da saúde, sem terem de continuar a depender de autorizações centrais para quase tudo. Descentralizar e desconcentrar não significa descoordenar. É possível implementar a coordenação regional e nacional sem coartar a autonomia das instituições.

11 – Sendo uma medida conjuntural, substituir a atual Direção Executiva do SNS e incorporar as suas funções na já existente ACSS . A função de Direção nacional deve ser executada pela ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde) e as ARS seriam substituídas por delegações regionais da Administração Central.

12 – Unificar o “comando” dos denominados cuidados continuados, em todas as tipologias, sob o ministério da saúde e acabar com a dupla tutela com o ministério da segurança social. Ainda mais arrojado e provavelmente mais eficiente, seria, logo quando o governo fosse constituído, fundir saúde e segurança social num único ministério como acontece em tantos outros Países e como já foi em Portugal. Mas, para efeitos deste texto, vamos supor que se mantém um ministério só para a saúde, mesmo sabendo que tem sido quase só para a doença.

13 – Criar uma agência dedicada à avaliação de tecnologias de saúde, separada do atual INFARMED, e à promoção e verificação da qualidade em saúde, separada da DGS e da IGAS. Só com a melhoria geral da qualidade, exigindo certificação, auditorias, formação, aplicação de orientações e normativos o sistema poderá ser eficiente e sustentável. O sistema precisa de regulação para que seja equilibrado, sem desigualdades, efetivo e eficiente. A forma mais eficaz de ganhar eficiência é pela eliminação do desperdício, por exemplo, com tratamentos inúteis. Só com um bom desenho de programas de qualidade em saúde será possível gerar, simultaneamente, ganhos e poupanças em saúde.

14 – Mudar o sistema atual de introdução e de manutenção no mercado de medicamentos, tornando-o mais simples, mais rigoroso, transparente e rápido, acompanhando esse processo pelo reforço de meios do INFARMED.

15 – Rever a Lei de Bases da Saúde e, consequentemente, o Estatuto do SNS. Também será preciso rever alguns instrumentos de gestão hospitalar como os que se referem a Centros de Responsabilidade (CRI) que, por exemplo, deverão incidir sobre procedimentos específicos e não sobre toda a produção do centro. Por exemplo, em vez de transformar todo o serviço de oftalmologia num CRI, porque não contratualizar, como se de um CRI se tratasse, a produção de facectomias (o nome técnico da remoção de cataratas)?

16 – Rever o quadro de ULS existentes, retirando os hospitais universitários de Lisboa, Coimbra e Porto das ULS onde foram metidos. Aproveitar as ULS para a promoção da integração de níveis de cuidados e apostar muito na intervenção domiciliária de cariz social e sanitário.

17 – Reformular tudo o que se prende com a criação, reconhecimento e financiamento dos chamados centros de excelência do SNS, manifestamente excessivos e nem sempre de excelência. Será preciso rever e concentrar determinados tipos de cuidados e desconcentrar outros.

18 – Iniciar o processo de remodelação dos hospitais que estão velhos, repor material em falta e garantir circuitos de abastecimento sem burocracia estulta, substituir o que tem de ser substituído no parque de instituições de saúde existentes, consertar avarias, assegurar manutenção permanente. No fundo, não se compreende porque os hospitais públicos têm de ser desconfortáveis, sujos, antiquados, mais inseguros e piores do que os hospitais privados. A hotelaria tem de estar ao nível da qualidade clínica.

19 – Aperfeiçoar o quadro legislativo que incide sobre a proteção ao risco da exposição ao fumo de tabaco, álcool e drogas ilícitas, com especial incidência na prevenção de risco em jovens, na promoção do abandono de consumo e na literacia em saúde.

20 – Desenvolver programas efetivos e eficientes de promoção da saúde e prevenção da doença, baseados na melhor evidência, sistematicamente avaliados e escrutinados, pelo que será necessário repartir o que se gasta em saúde, eliminando desperdícios, para que possa reforçar o investimento em prevenção de doenças.

Na 3ª parte irei escrever sobre medidas de reforma mais profunda do SNS e do acesso dos utentes aos cuidados de proteção da saúde.