O capitalismo entrou sozinho nos anos 20 do século XXI. O comunismo morreu. As economias baseadas no planeamento central, com o Estado a deter os meios de produção, falharam rotundamente na organização do processo produtivo. Em todos os continentes, da Europa às Américas, na Ásia e em África, a organização da economia passou a assentar em empresas privadas, que procuram o lucro e concorrem entre si. No entanto, o sistema capitalista, nas suas diversas variantes, singrou não só em regimes liberais democratas de tipo ocidental, mas também em regimes autoritários como a República Popular da China ou o Vietnam. Não se cumpriu ainda o vaticínio do Fim da História de Francis Fukuyama, apresentado em 1989, de acordo com o qual as democracias liberais imperariam em todos os países.
Nos anos 1970, a crise económica, com um forte aumento do desemprego e da inflação, veio pôr em causa o modelo económico seguido pelas principais economias do Ocidente. A eleição de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, na viragem da década de 80 do século XX, anunciava o fim duma era marcada por um crescente intervencionismo do Estado e a libertação dos mercados das peias do Estado. A queda do Muro de Berlim e a implosão do Império Soviético, no início dos anos 1990, afastou muitos dos obstáculos ideológicos à liberalização do comércio internacional e à desregulamentação dos mercados de trabalho e de capitais – este movimento de liberalização interna e externa ficou conhecido como o Consenso de Washington. No plano político, reinava o optimismo em relação à democracia liberal como forma de governo. Ao contrário do que previra Marx, o futuro não nos reservava uma sociedade sem classes, mas sim a democracia liberal e o capitalismo.
A crise financeira internacional de 2008 pôs a nu os excessos da globalização financeira, da liberalização dos mercados de capitais, e as falhas do Estado na sua regulação. Para combater a mais grave crise do sistema capitalista desde a Grande Depressão dos anos 30 o Estado foi obrigado, em muitos países, a tomar medidas drásticas como a nacionalização de bancos. Nesses anos, o pêndulo deslocou-se novamente no sentido de um maior intervencionismo do Estado. Muitos anteciparam o fim do capitalismo. Todavia, o anúncio revelou-se mais uma vez prematuro.
A crise financeira internacional acelerou a deslocação do centro económico do mundo do Atlântico para o Pacífico. Essa mudança, dada a crescente importância da China na economia mundial, veio consolidar a posição do capitalismo como sistema económico global. O capitalismo provou ser o sistema económico que melhor satisfaz as necessidades materiais das populações.
De facto, não é possível dissociar o sucesso do sistema capitalista dos extraordinários resultados económicos da China nas últimas quatro décadas: entre 1980 e 2019, a taxa média de crescimento anual do PIB foi 9,4%. Em 2018, em paridades de poder de compra, a China tornou-se a maior economia mundial, representando 20% do PIB. Naquele período, estima-se que foram libertados da pobreza 850 milhões de chineses. Talvez ainda mais surpreendente, nos últimos anos a China tornou-se um dos líderes mundiais na investigação científica e na produção de tecnologia (smartphones, 5G, aeronáutica, energias renováveis e nuclear, entre outras).
Os resultados económicos da China – únicos nos registos da história económica – foram alcançados no contexto de um regime político autoritário, pondo em questão a visão ocidental da associação entre capitalismo e democracia liberal. Na verdade, os estudos empíricos não corroboram a hipótese da relevância da democracia para o crescimento económico. De qualquer maneira, no Ocidente prevalece ainda a ideia de que a partir de um determinado patamar de desenvolvimento a existência de liberdades políticas torna-se uma condição necessária para o crescimento económico, nomeadamente quando a inovação passa a ser decisiva. Por outro lado, acredita-se também que a ausência de um Estado de direito na China gera problemas de incentivos à acumulação de capital e de conhecimento e, por consequência, é um entrave ao crescimento económico. Até agora, nenhuma destas hipóteses se verificou na China.
Atendendo ao facto de o sucesso económico ser compatível com diferentes sistemas políticos, talvez valha a pena atentar numa ideia antiga, que a política e a economia são dimensões que podem ser tratadas separadamente. Consideremos, por exemplo, os casos da Europa e da China na primeira era da globalização e na actual era da hiperglobalização.
Jared Diamond associa a liderança europeia nos Descobrimentos do século XV à fragmentação política então existente. A rivalidade entre as potências europeias favoreceu a inovação, os empreendimentos das descobertas e a expansão dos impérios. Daqui resultaria o domínio da economia mundial pelo Ocidente nos cinco séculos seguintes. No caso da China, um país unificado desde o ano 221 A.C., uma disputa entre facções no século XV ganhou a que preconizava o fim da expansão no Índico – daí resultou a destruição quase total da frota, que era muito superior às europeias em dimensão e em sofisticação.
Nas últimas décadas, a China foi o país que aproveitou melhor os benefícios da globalização. Desde o final dos anos 1970, Deng Xiaoping e os líderes que se seguiram prosseguiram uma estratégia assente nos princípios do capitalismo e na promoção das exportações. Ao contrário do que aconteceu no século XV, desta vez a centralização do poder político na China foi bem-sucedida. A China é hoje a maior economia e o maior exportador mundial.
A União Europeia, pelo contrário, apesar dos passos dados no sentido de uma maior integração económica e financeira, com a criação do mercado único e do euro, continua fragmentada: tarda em concluir a união bancária, não há coordenação das políticas fiscais e orçamento europeu é quase irrelevante. Tendo sido uma vantagem na era da primeira globalização, a fragmentação da Europa talvez se tenha tornado uma desvantagem na era da hiperglobalização. Nas duas primeiras décadas do século XXI, a UE perdeu relevância na economia mundial: entre 2000 e 2018, o peso do seu PIB na economia mundial diminuiu de 24% para 16%. A liderança mundial é hoje disputada pelos Estados Unidos e pela China.
O enorme sucesso da estratégia de desenvolvimento seguida pela China tem gerado admiradores de muitos quadrantes. A concentração em objectivos de médio e longo prazo, o sistema meritocrático na escolha dos dirigentes do Estado e a base tecnocrática do processo político de decisão são apresentados como vantagens do regime chinês em relação às democracias liberais da UE.
De facto, os países europeus estão cada vez mais reféns de estratégias de curto prazo, ligadas ao ciclo político das legislaturas, e respondendo a pulsões populistas, marcadas pelo nacionalismo, pela rejeição da globalização e pela crítica às elites.
O futuro da UE vai depender da capacidade dos seus Estados-Membros e da UE como um todo conseguirem tirar partido da globalização, garantindo ao mesmo tempo os valores da democracia. Só será possível manter viva a utopia da democracia liberal como Fim da História fazendo reformas no sistema político dos países e da UE.
NOTA — A solidão do capitalismo é uma tradução livre do título do último livro de Branko Milanovic, Capitalism, Alone.