Como se sabe, uma escultura de Pedro Cabrita Reis, intitulada “A Linha do Mar”, recentemente instalada na Avenida da Liberdade de Leça da Palmeira, foi pintada com palavras como “vergonha”, “300.000 euros”, “os nossos impostos”, e mais umas coisas assim. Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, que havia encomendado a obra por cerca dos tais 300.000 euros, declarou, em protesto contra o acto, que, na sua opinião, o Estado deve fomentar o acesso à cultura por parte da “classe média e baixa” e que “a política cultural é determinante para combater a intolerância”. Já o artista, Pedro Cabrita Reis, foi mais longe: “Não é um vandalismo contra a minha escultura, é uma manifestação de extrema-direita”, disse ao Público, acrescentando que estamos em presença de uma “manifestação provocatória de arruaceiros de extrema-direita”, “com os intuitos típicos de uma cultura de ódio, populista”, coisa própria a pessoas “que vivem claramente em roteiro de colisão e de confronto com a sociedade democrática e que, lamentavelmente, agora até têm uma voz na Assembleia da República”. Suponho que o ridículo do propósito vem da compreensível irritação.

Já muita gente falou e escreveu sobre este, apesar de tudo pouco excepcional, episódio. O que não falta por aí são lugares públicos, incluindo obras de arte, vandalizados e, particularmente na altura do “Porto Capital da Cultura”, intervenções, como se diz, no espaço público cujo gosto é discutível, como, na Avenida de Montevideu, a substituição de uns simpáticos e bonitos bancos em frente ao mar por uns pousos agrestes para namorados desavindos – já para não falar da destruição pouco criativa do Jardim da Cordoaria (onde, por coincidência, ou é uma mania, os simpáticos banquinhos também foram desta para melhor, substituídos por uma sua paródia kitsch). Tanto as razões para se queixar de Pedro Cabrita Reis como as dos anónimos que protestam contra a Câmara de Matosinhos têm, portanto, um longo historial. O que esta história particular tem de interesse reside em algo diferente. E não me refiro à “extrema-direita”, que agora toda a gente refere, quase sempre a despropósito. O interesse da história tem a ver com a relação da arte contemporânea com o gosto mais comum das pessoas.

Arthur Danto, um influente filósofo americano da segunda metade do século XX e do princípio do XXI, conhecido sobretudo pelas suas obras de estética, dedicou-se, entre outras coisas, à teorização do que chamou “mundo da arte”. De acordo com Danto, a qualificação de um objecto como objecto artístico – a sua aceitação, por assim dizer, no mundo da arte — depende da articulação de um determinado “discurso de razões” que o institui como obra de arte. A qualificação de um determinado objecto como “artístico” seria sempre o produto de uma decisão, eventualmente obtida através de pressões, imposições, negociações, do “mundo da arte” (artistas, críticos, etc.). Ora, há sem dúvida uma parte de verdade naquilo que Danto diz, independentemente de falhar algo de essencial no que respeita ao juízo estético, fundado no prazer ou no desprazer que uma obra de arte nos provoca, se me é permitida uma concepção tão pouco contemporânea, à qual voltarei no fim. O problema é que, mais do que nunca na história, a obra, não se limitando a conviver com os argumentos que a apoiam, depende por inteiro deles, ao ponto de quase se confundir com estes, com o tal “discurso de razões”.

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