A simpatia dos meus vizinhos silenciosos faz esquecer a sisudez de dois velhos que, todas as manhãs, se aquecem com uma aguardente na esplanada do café. De cara fechada, os velhos não me passam cartão, nem a ninguém — foi comovida que, há dois domingos, vi um deles finalmente radioso como um rapaz, entre cigarrilhas, desdentado, conversando com a família que raramente o visita, deixando sair um primeiro sorriso em mais de um ano. Já os vizinhos silenciosos são os primeiros a dar-me os bons-dias à sua maneira, torcendo-se quando me vêem para estender o braço, saudando-me.

Entre eles, um casal na casa dos cinquenta, se tanto, bebe o café por palhinhas na mesa ao lado, zangando-se e reconciliando-se com a vida, como nós os dois. A ela, numa cadeira de rodas eléctrica, costumo vê-la à entrada de um supermercado, onde, estacionada diante da porta automática, vê entrar e sair os clientes o dia inteiro. Ao entardecer, volta para a residência, deslizando entre a berma e o meio da estrada, de regresso a ele, obrigando ao desvelo dos condutores, cuja passagem, iluminando as costas da cadeira com os médios, contornam de luz os seus cabelos desgrenhados: uma assombração tranquila. Anoitecendo, ainda a caminho, o vulto parece deitar fumo, lembrando um monte de caruma revolvido depois de um incêndio, como se ela mesma se viesse apagando de um fogo pelo caminho.

Conhecem o bairro como nenhum de nós, todos eles: sabem de cada pedra solta da calçada; que por certo atalho haverá um contentor do lixo a impedir a passagem; reconhecem a léguas a fronha dos mal-educados que estacionaram o carro sobre a rampa, e que os auxiliares não se cansam de admoestar levantando os pára-brisas. Em manhãs de ventania, desarregaço, de vez em quando, a seu pedido, a manga da camisa a um deles; outras vezes, endireito um relógio de pulso que, insistentemente, se vira ao contrário. Alguns conseguem beber galões à mesa do café ao pequeno-almoço, que pagam com trocos tirados por alguém da pequena mochila que todos trazem presa às costas da cadeira de rodas. Outros, na flor da idade, entretêm-se junto a um banco de jardim onde um grupo de miúdos fuma charros às escondidas, metendo-se com os meus vizinhos, dando-lhes a ouvir música rap, ensinando-lhes os últimos palavrões, e falando de miúdas. Ninguém os trata como crianças e não há crianças entre eles. Em dias sempre incertos, organiza-se uma gincana: divertem-se a apurar quem conduz a cadeira mais depressa entre pinos de ferro. No Santo António, vêm as famílias, assa-se meio porco, canta-se Anselmo Ralph. Nas tardes de muito calor, dispersos, refrescam-se à sombra de uma buganvília, como vasos à espera de quem os regue, esperando, ao mesmo tempo, alguma coisa e coisa nenhuma.

O meu cão medroso toma-os por seres temíveis por se locomoverem em cadeiras de rodas e por se expressarem de maneira distinta. Após um ano de avanços e recuos, um dos mais jovens conseguiu finalmente que ele não se apavorasse com a aproximação da cadeira — e deu-lhe uma festa. Estendeu a mão com enorme esforço e, esticando os dedos obstinados, tocou-lhe no pêlo e afagou-o de leve, rindo de alto a baixo como se percorrido por uma corrente eléctrica, num arrepio de alegria. Ganhou o dia que nos custa a ganhar quando, indo e vindo do bairro, vamos à nossa vida. São os meus vizinhos mais simpáticos. Guardam o bairro de onde muitos quase nunca saem, recebem-nos com palmas, já nos toparam, namoram-nos e, se calhar, sonham connosco.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de “Esse Cabelo” (Teorema-Leya).

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