A Inês nasceu de frente para o mar, aos 16 anos já fala quatro línguas, acumula milhas, frequenta um colégio privado e trata os amigos dos pais por tios. Ângela é a segunda de quatro filhos, ao domingo ajuda na associação de moradores do bairro, anda a juntar uns trocos para umas sapatilhas, chumbou o ano por faltas e a viagem mais longa que fez tinha 22 paragens de metro. Vivem na mesma cidade, mas não se conhecem. São duas metades que não se tocam nem se misturam.

Ambas têm o futuro nas mãos, as mesmas duas, dez dedos e um emaranhado de linhas com um destino indecifrável, mas o que cada uma pode ambicionar é desigual. Foi a sorte repartida ao nascer. Se há momento mais determinante na nossa vida, do que somos e especialmente do que podemos ser, esse momento é o nascimento. Quem nos acolhe, o que nos rodeia, ao que temos acesso, estabelece o grau de dificuldade que a vida nos impõe. Às vezes, é duro entender e aceitar o porquê de alguns avançarem em caminhos ligeiros, bem iluminados e coloridos de hidrângeas fortes e vistosas, enquanto outros seguem em carreiros empedrados, onde a luz é exígua e que em cada solavanco a espinha estremece e se curva.

Mas não tem que ser sempre assim. Também há quem arrisque saltar o muro e rasteirar o destino com determinação. É desses a história e o exemplo. Quando o filho do jardineiro José e da cozinheira Dolores nos hipnotiza em cada livre com uma bola, quando a menina Cristina Maria deixa a banca da feira para ser acionista de uma estação de televisão ou quando um calceteiro aspira a ser Presidente da República, estão a colocar o mundo ao contrário ou talvez do lado certo. Em comum? O pouco, a persistência e até um certo atrevimento. Chegam mesmo a incomodar uma elite preconceituosa, a despertar em nós a arrogância da crítica barata, da inveja mesquinha, da maledicência miudinha. Procuramos-lhes os deslizes, as brechas, o erro, um corrupio de teorias da conspiração e compadrios que justifiquem a sua audácia e a nossa falta de coragem.

São estes e podiam ser muitos outros. Empresários reconhecidos, cientistas medalhados, médicos, artistas, engenheiros, desportistas, pensadores, bravos de todas as áreas. Lá estão eles, focados nos seus objetivos, sem negar de onde partiram e certos que só um esforço extraordinário os fez chegar ao que ambicionaram. Ao longe, por entre a neblina dos focos, parecem-nos raposas altivas, mas quando os vemos de perto não são mais do que formiguinhas sem descanso, o lado honesto da fábula. Na Malveira, no Funchal, em Rans, no Cerco ou na Cova da Moura, precisamos de continuar a acreditar que a sorte ainda protege os que têm a ousadia de sonhar.

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