China, 2019.
“Uma vez desacreditado, para sempre limitado” é o novo lema do governo chinês.
Em Março deste ano, o governo anunciou (com orgulho) que 23 milhões de cidadãos haviam sido impedidos de comprar bilhetes de avião ou de comboio.
A razão? Não se haviam provado confiáveis aos olhos do Estado. É esta a nova realidade do povo chinês, ao abrigo do seu novo Sistema de Crédito Social.
Criado em 2014, este visava restaurar a confiança da população. Durante os últimos 5 anos, 200 milhões de câmaras de vigilância foram distribuídas pelo país, capacitadas não só de ferramentas de reconhecimento facial, mas também de voz, para garantir o bom comportamento de cada cidadão. Afinal, só assim uma sociedade pode florescer, sendo uma medida de bem comum.
Nos bastidores, estas câmaras alimentam um enorme sistema de dados que classifica, em tempo real, cada cidadão em função da sua conformidade com os padrões morais do Estado.
Inicialmente, o sistema foi proposto num contexto puramente económico. Como a população não tinha uma cultura bancária, era complicado avaliar a sua probabilidade de pagar empréstimos ou verificar se cumpriam (ou não) as suas obrigações fiscais.
No entanto, o Partido Comunista Chinês rapidamente aproveitou o ímpeto tecnológico para impor a sua própria agenda totalitária. Assim, hoje, poderá ser considerado um mau cidadão aquele que, por exemplo, não pague uma multa a horas.
Só isso? Não.
O cidadão faz uma crítica ao regime numa rede social? O seu rating baixa.
O cidadão passa demasiadas horas a jogar no computador? O seu rating baixa.
Comete a heresia de não passear o seu cão com uma trela? O seu rating baixa.
É cristão em Henan ou muçulmano em Uyghur? O seu rating baixa.
Ter um rating baixo implica um conjunto inimaginável de limitações à liberdade individual. O cidadão deixa de se poder candidatar a empregos no setor público e não consegue empréstimos para casa ou carro.
Deixa de poder inscrever os seus filhos nas melhores escolas, a sua internet torna-se lenta ou inacessível e ainda acaba com o seu nome numa lista negra, evidentemente pública.
Na sua locomoção, a humilhação é-lhe entregue de forma gratuita e imediata. Uma simples viagem de 4 horas pode ser recusada e transformada numa alternativa num qualquer comboio secundário que demora 40 horas a fazer o mesmo trajeto.
Qual é o limite? A já descrita, na ficção, polícia do pensamento. E quando a tecnologia evoluir, e os cidadãos chineses começarem a serem presos e enviados para campos de “reeducação” antes mesmo de cometerem um crime, apenas porque o sistema acredita que há a probabilidade de os virem a cometer?
O método não é de agora. Desde 1949, com Mao Zedong, que o partido encorajava os cidadãos a olharem uns pelos outros e reportarem ações que não cumprissem com as ideologias dominantes.
Durante a Revolução Cultural, os mais jovens eram obrigados a reportar os próprios pais caso neles vissem qualquer comportamento contra-revolucionário. Qualquer comparação com a família Parsons (1984) será, certamente, pura coincidência.
Contudo, os constantes avanços tecnológicos criaram as condições para que a primeira ditadura tecnológica e digital fosse criada. E como qualquer sistema inteligente, a cada dia que passa torna-se mais forte, mais astuto, mais eficaz.
O sistema caminha agora para a sua expansão dentro e fora de portas. Na China, espera-se que no final do próximo ano, quando o sistema estiver em pleno funcionamento, o número de câmaras atinja os 600 milhões (1 para cada 3 cidadãos). Do outro lado do mundo, surgem relatos de que Maduro, na Venezuela, já terá encomendado uma versão do sistema para o seu próprio país.
Diversos grupos de direitos humanos já se pronunciaram sobre este tema, sem sucesso. Em resposta, o Partido Comunista Chinês refuta as acusações, considerando que os ocidentais são pouco sofisticados para entender as maravilhas do novo sistema.
Num dos seus jornais (Global Times), pode-se ler que “as hipotéticas teorias do Oeste são fruto da sua própria ignorância” e que o Sistema de Crédito Chinês “vai para lá do entendimento dos países ocidentais”.
A superioridade moral dos comunistas não nos é nova. Em 1974, Álvaro Cunhal produziria, com o mesmo título, um pequeno fascículo anexo à primeira edição d’O Avante.
Nele, Cunhal dizia: “Os comunistas não se distinguem apenas pelos seus elevados objetivos e pela sua ação revolucionária. Distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais. (..) A moral dos comunistas é contrária e superior à moral burguesa.”
Não admira então que, 50 anos volvidos, a sensação de superioridade moral se mantenha ativa nos Partidos Comunistas espalhados por esse mundo fora. Que a tecnológica a tenha acompanhado, esse é um facto, para mim, (muito) mais assustador.
Um dos problemas deste sistema é a forma como designa e obriga o cidadão a um padrão moral, numa confluência quase religiosa com a doutrina política do país.
Como leitor de ficção científica que sou, não consigo deixar de imaginar uma das soluções para esta realidade. Alguns autores contemporâneos estão a criar, nas suas histórias, espaços digitais aos quais apenas os próprios cidadãos podem aceder.
Em Lock-In (de John Scalzi) este espaço chama-se “Agora”, onde os threeps (robots com consciência humana) podem viver e convidar outros para conviver. Em Ready Player One (de Ernest Cline), muitas pessoas desistiram do mundo real e passaram a viver no “Oasis”, um mundo virtual acessível por todos.
Tecnologicamente ainda não estamos aí e, ironicamente, num país onde a internet é fortemente controlada, essa solução continuaria a não poder ser usada.
Dito isto, não sei que futuro está reservado para os Chineses e entendo que as obras de Orwell, Bradbury e Huxley sejam ficção. Espero, contudo, que neste caso elas não se verifiquem realidade.
João Romão tem 30 anos e é o fundador da GetSocial.io, uma empresa de desenvolvimento de software. Tem desenvolvido produtos e explorado ideias à volta dos temas do impacto das redes sociais na sociedade, futuro do trabalho e inteligência artificial.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.