1 Ambiguidade e responsabilidade

Em Tragedy, The Greeks, And Us, Simon Critchley propõe a tragédia grega como abordagem filosófica. Essa filosofia da tragédia assentaria no princípio de que a tragédia é a experiência da ambiguidade moral. Afinal,

“[o] certo está sempre em ambos os lados e, invariavelmente, também está o errado. A justiça é um conflito, o que significa que a justiça está dividida. A justiça não é uma, mas pelo menos duas. Este facto pode ser encontrado em todo o lado na tragédia, mas é mais evidente na Oresteia.”

A ambiguidade moral e a complexidade natural da realidade tornam, ao contrário do que gostamos de admitir, difícil afirmar com certeza o que está certo e o que está errado. E talvez seja por isso que a grande pergunta filosófica, que nos persegue desde os gregos, seja fundamentalmente uma: a de saber o que devemos fazer.

Permitindo refletir sobre a ação, a tragédia torna simultaneamente evidente a ilusão de autonomia (a ideia de que somos seres absolutamente autónomos e capazes de tomar autonomamente decisões), mas também a ilusão da irresponsabilidade (a ideia de que a infortuna resulta do azar ou da intervenção desdenhosa dos deuses e do destino, sem qualquer responsabilidade da nossa parte). Embora muitas leituras da tragédia convoquem uma ideia do homem como vítima das circunstâncias ou como um fantoche nas mãos dos deuses, Critchley apresenta uma versão diferente:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A tragédia exige um certo grau de cumplicidade da nossa parte no desastre que nos destrói. Não se trata simplesmente de uma atividade malévola do destino, de uma profecia sombria que decorre da vontade inescrutável, mas muitas vezes questionável, dos deuses. A tragédia exige a nossa conivência com esse destino. Por outras palavras, exige uma grande dose de liberdade”.

Mais uma vez, Rei Édipo é um bom exemplo: o decifrador de enigmas já dispunha de pistas, informações e muitas dúvidas sobre as suas circunstâncias. Ignorá-las, ou não ter sido prudente quanto a elas, foi um ato da sua responsabilidade. Assim,

“[u]ma lição da tragédia é que conspiramos com o nosso destino. Ou seja, a fatalidade exige a nossa liberdade para que o nosso destino se abata sobre nós. A contradição central da tragédia é que nós sabemos e não sabemos ao mesmo tempo e somos destruídos no processo.”

É este duplo apelo à ambiguidade e à responsabilidade que nos pode ajudar a compreender melhor as dificuldades dos nossos tempos, marcados por um esforço contínuo de simplificação e vitimização: como se a realidade não fosse ambígua e complexa e como se nunca tivéssemos responsabilidade em relação ao caos.

2 Factos e valores

A tragédia como filosofia ensina-nos, então, a percecionar a realidade como essencialmente ambígua, como palco de disputa entre diferentes visões do mundo, diferentes entendimentos do que está certo e errado, mostrando que há verdade e erro dos dois lados e que a justiça resulta dessa própria ambiguidade. Quando esquecemos essa complexidade,

“[c]ada lado acredita inabalavelmente na retidão da sua posição e no erro ou, como se costuma dizer, no mal do inimigo. Essa crença legitima a violência, uma violência destrutiva que desencadeia a contra-violência como resposta. Parecemos ficar retidos num ciclo de vingança sangrenta e presos a círculos viciosos de sofrimento e raiva causados pela guerra.”

Eis a grande lição da tragédia: quando evitamos a ambiguidade e o conflito de ideias, somos, paradoxalmente, conduzidos à violência e à guerra. Simplificar a realidade e, em particular, reivindicar um acesso privilegiado à verdade que demoniza o que pensa de forma diferente – mesmo que feito em nome da paz, dos direitos humanos, da inclusão – parece conduzir à violência e ao caos. Estes decifradores da verdade são os primeiros a descartar qualquer responsabilidade no desastre – mas eis a segunda lição da tragédia: tal como Édipo compactuou com o destino, também estas pessoas ignoraram os avisos.

As sociedades ocidentais parecem viver hoje uma condição de caos latente, que pode ser interpretada como resultado dessa tentativa de silenciar outras vozes e outras interpretações do mundo – como se a realidade fosse simples e a justiça evidente. É aquilo a que o cientista político Jeffrey Friedman designa de crise epistemológica, quando chama a atenção para o facto de o espaço público estar ocupado por opiniões que

“não se baseiam em ‘alegações’ mas em ‘verdades’. Assim, a outra parte, ao discordar dos meus argumentos, está a ‘ignorar a verdade’ ou, mais concretamente, a ‘divulgar informação incorreta’ ou mesmo ‘desinformação’.”

Parece haver, de facto, uma confusão generalizada entre “factos” e “valores”, como se, perante determinado facto, só fosse possível uma determinada apreciação valorativa. Uma apreciação de valor diferente é entendida como recusa em ver a verdade ou erro (na maioria das vezes, induzido por outrem), dando origem à acusação de desinformação e desencadeando histéricos fact-checkings (mais sobre isto em breve).

Na verdade, a política é o terreno do confronto e da disputa entre valores, mesmo que partindo dos mesmos factos, e a democracia foi a forma que encontramos para resolver essa disputa sem violência e tirania. Mas para que a democracia funcione é necessário que os seus participantes sejam capazes de fazer aquilo que o tirano não faz: ouvir o outro lado.

3 O princípio da caridade

De acordo com Critchley, uma das formas de interpretar o título da peça de Sófocles – Oidipous Tyrannos, no original – resulta de Édipo se recusar a ouvir o que lhe é dito, nomeadamente por Tirésias, que, muito cedo na peça, lhe diz que ele é a causa do mal que atinge a cidade: “Édipo simplesmente não ouve Tirésias. (…) O tirano não ouve o que lhe é dito e não o que está diante dos seus olhos.”

Diogo Ventura/Observador

Diogo Ventura/Observador

Já o valor da democracia passa por garantir que todas as vozes são ouvidas (mesmo que, por vezes, alguns excessos possam ser cometidos) por forma a que os governantes consigam ver, ouvindo essas vozes, o mundo real de que estão, naturalmente, afastados. Mas quando aqueles que deveriam servir de mediação democrática estão de tal forma afastados da mundividência de alguns grupos sociais e recusam que os factos possam ser interpretados de modo diferente – em resultado de valores diferentes, mas também de impactos sociais diferentes –, o espaço de diálogo democrático desaparece. Aí a culpa passa a ser da extrema-direita, da desinformação, do racismo, de Donald Trump. O que parecem incapazes de reconhecer é a sua cumplicidade: não quiseram ouvir.

Que contributos pode dar aqui a filosofia da tragédia? Na medida em que a tragédia incentiva o raciocínio adversativo (“adversarial reasoning”), fazendo-nos pensar a partir da posição do adversário e ouvir o outro lado, ela pode ensinar-nos que o mais provável não é que o outro seja ignorante ou a maldade em pessoa: o mais provável é que veja as coisas de forma diferente. E, por isso, Friedman apela ao princípio filosófico da caridade:

“devemos tentar, na prática, compreender com empatia as ideias que podem levar os nossos adversários políticos, de boa-fé, a conclusões diferentes das nossas”.

E isto significa não ser parcial nas notícias, não atirar números e factos com o objetivo de desvalorizar as preocupações das pessoas e não demonizar aqueles que pensam de forma diferente. Porque enquanto as populações tiverem direito de voto, vão fazer ouvir a sua voz nas urnas. E depois não se queixem da marcha da extrema-direita.