Como vimos, David Goodhart, em The Road to Somewhere, propõe um esquema conceptual para interpretar o annus horribilis de 2016: partindo da distinção entre somewheres (enraizados) e anywheres(desenraizados), seria possível compreender a nova divisão que progressivamente se afirma nas sociedades ocidentais.

Goodhart escreve a partir do contexto anglo-saxónico (em especial, o inglês), considerando que é a vivência universitária a principal causa da divisão entre aqueles que se mantêm ligados às raízes comunitárias e aqueles que se veem como cidadãos do mundo. Isto resulta de uma particularidade específica do mundo anglo-americano: para a grande maioria dos jovens, a ida para a universidade representa a saída do seu local de nascimento e um corte com as raízes familiares e comunitárias, passando a estar sujeitos a uma experiência cosmopolita, no duplo sentido de contacto com várias culturas e contacto com a moralidade progressista predominante no meio académico.

Seria esta experiência específica dos jovens universitários a transformá-los em desenraizados e a afastá-los da maioria da população – que, por sua vez, se manteria enraizada, na sua ligação às tradições e aos valores com que foi criada, abrigando, por isso, uma moralidade mais conservadora e uma resistência às mudanças contínuas que a dinâmica da globalização tem imposto às sociedades ocidentais.

Para Goodhart, esta divisão explicaria por que razão os estudos apontam para um eleitorado com menor formação e sem frequência universitária como mais propenso a ter votado em Donald Trump e pelo Brexit. Estes resultados representariam a sua revolta face à imposição, nas últimas décadas, de uma agenda globalista dos desenraizados, feita à custa do seu silenciamento.

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Devemos reconhecer que, muito embora se tenham manifestado politicamente em 2016, as tensões do processo de globalização já vinham sendo estudadas desde o início do novo século. De facto, em 2004 Vítor Bento já havia analisado criticamente os efeitos perversos do processo de globalização e o modo como eles poderiam originar sensíveis fraturas sociais. Em Os estados nacionais e a economia global, Bento destaca as vantagens económicas que resultam da globalização e que se podem traduzir tanto no plano nacional como a título pessoal – mas não deixa de reconhecer que essas vantagens tendem a ficar limitadas a uma parte reduzida da sociedade, abrindo a porta à possibilidade de se afirmar um forte ressentimento na maioria da população. Na verdade,

“se os mecanismos de solidariedade e de cooperação – quer ao nível nacional, quer ao nível inter-nacional – não forem geridos apropriadamente, a lógica associada à globalização pode abrir uma importante fissura social, com perigosas consequências. Não sendo universais, o domínio das novas tecnologias e o acesso às oportunidades da globalização tenderão a criar uma linha de fragmentação, entre o que se poderá designar por ‘elites globalizadas’ e por ‘massas localizadas’.”

Antecipando os acontecimentos da última década, o economista afirma:

“Se a ‘elite globalizada’ se assumir apenas como ‘cidadãos do mundo da prosperidade’, desgarrando-se das correspondentes ‘massas localizadas’ nacionais e deixar que estas consolidem essa sua situação, poderá levar a que estas se interpretem como as vítimas de um jogo de sucesso individual, cujas regras lhes são adversas. Não será então de surpreender que as ‘massas localizadas’ (…) deem origem a um ‘jogo alternativo’, onde a ‘elite globalizada’ seja confrontada como seu inimigo existencial e como alvo para o seu próprio sucesso nesse jogo.”

Foi precisamente esse jogo alternativo que os movimentos habitualmente designados como populistas colocaram à disposição dos enraizados, com especial sucesso para os que o fizeram a partir de uma narrativa nacionalista, que se revela mais eficaz para a crítica à agenda globalista. Afinal, como diz Bento,

“O espaço nacional continua a ser o único espaço relevante onde se manifesta, numa base dominantemente afetiva, um sentido de pertença comunitária e de mútuo comprometimento suficientemente definidos para alicerçarem, na prática, a responsabilidade social.”

Embora o termo populismo seja um conceito essencialmente disputado, para usar a expressão de W. B. Gallie, e os estudos académicos sobre o tema se tenham multiplicado na última década, há uma estrutura básica que os autores identificam: essa estrutura passa pela crítica ao sistema político, em especial ao mecanismo de representação, considerando que há uma elite (política ou económica) que beneficia do sistema à custa da maioria da população (o povo). A democracia liberal estaria, neste sentido, corrompida pelo facto de o seu mecanismo de representação não representar os interesses da maioria da população, mas parecer antes avançar os interesses da elite globalizada.

Os movimentos populistas assumem-se nesse sentido como antissistema e têm conseguido capitalizar o descontentamento gerado pela dinâmica da globalização e da agenda globalista e viver do ímpeto de ressentimento e humilhação sentido por franjas crescentes da população, como chama a atenção Michael Sandel para explicar o seu crescimento.

Este jogo alternativo tem-se mantido como a sombra constante da política ocidental na última década e tornou 2022 um annus horribilis para a política francesa: os candidatos antissistema obtiveram a maioria dos votos na primeira volta das eleições presidenciais e Marine Le Pen disputou até ao último momento a vitória na segunda volta; e nas recentes eleições legislativas, os resultados geraram um estado de difícil governabilidade. Correspondendo à elite desenraizada, a agenda globalista e progressista de Macron vê-se crescentemente ameaçada pelo jogo alternativo convocado pela União Nacional e a França Insubmissa, que apelaram diretamente aos custos económicos, identitários e morais da política globalista.

Mas estes resultados não surpreendem aqueles que têm acompanhado a realidade francesa, nomeadamente o tema que Jaime Nogueira Pinto designa como o da França dividida. Como diz Michel Houellebecq, em O mapa e o território:

“Para a questão de saber quando é que um estranho à terra se podia fazer aceitar numa zona rural francesa a resposta era: nunca. Aliás, não manifestavam nisso qualquer racismo ou qualquer xenofobia. Para eles, um parisiense era um estrangeiro, tanto como um alemão do Norte ou um senegalês; e, decididamente, de estrangeiros não gostavam.”

Falta saber se podemos esperar o mesmo tipo de fratura social em Portugal.