«O eu – escrevia Lévi Strauss em O Homem Nu – é uma criança mimada que ocupa o palco e se recusa a sair de cena». Ignorar ou torcer as leis para delas se retirar unicamente aspectos vantajosos tem transformado a actividade política em longa crónica de uma mera ficção. Paradoxalmente a transparência é quase total; a exemplo das tribos, comporta traços biológicos que acompanham comportamentos ancestrais: tudo está determinado pelas hormonas, pelos genes e pelas sinapses dos grupos a que se pertence, lembrando negativamente o primeiro movimento definido pelo grande antropólogo francês, «aquém do pensamento e além da sociedade». Pensar, para essa tribo, parece uma espécie de vibração fortuita, não um fruto da civilização.
Ligados entre si pelo facto de pertencerem a um mesmo sistema, os indivíduos adoptam modelos de comportamento miméticos, traduzindo como que um complexo jogo de espelhos, numa estéril e continuada reduplicação narcísica. Sucede-se uma espiral de comportamentos “semelhantes”. É sabido que o narcisismo é uma fase universal do comportamento infantil. Aonde formos, levaremos a criança que fomos connosco, dizia Freud («a criança é pai do homem»). Mas replicar politicamente comportamentos biologicamente tão lineares insinua cumplicidades suspeitas, movendo-se sempre na mesma direcção, a sobrevivência no poder, aumentando e expandindo os sentimentos de impotência e desfasamento dos cidadãos.
Talvez a nossa democracia esteja de facto ainda no berço, e por isso ela seja tão permeável a quem dela tem feito referência legitimante de interesses particulares e bens privativos. Temos sem dúvida uma «democracia de autorização» (há eleições e permissão para governar), mas o distanciamento e a falta de controlo sentidos arrastam-nos e dispersam-nos enfraquecendo uma «democracia de exercício», utilizando aqui a pertinente distinção de Pierre Rosanvallon (La contre-démocratie, la politique à l’âge de la défiance). Apesar de as eleições serem uma característica primeiríssima de um regime democrático, é claro também que elas não são, só por si, suficientes para determinar se um governo é democrático. Aliás, podem até converter-se em momento de frustrações democráticas, dando ascensão a partidos populistas. Não viveremos democraticamente senão num regime democrático, mas uma coisa é o regime, outra coisa é o governo. Tal como se deve distinguir entre a prescrição de um medicamento e a respectiva descrição. A democracia contempla um horizonte experiencial e casuístico, além de uma moldura normativa e jurídica.
As leis destinam-se a regular comportamentos. Confiamos que as coisas funcionem porque há leis. Constatamos, contudo, exactamente o contrário: não é porque as leis existem que devemos pensar que as coisas funcionam. A tribo é perita em cultivar ambiguidades e indeterminações. Desta sua competência depende a possibilidade de continuar a viver “da” política (não necessariamente “para” a política). Como lembra um filósofo, dificilmente uma lei aparece escrita com tal clareza que, quando a sua causa for esquecida (o motivo da lei) um gramático ignorante ou um lógico arguto não a possa explorar e adaptar, tirando dela apenas o que se lhe apresentar conveniente. Não é casual aliás, sublinharia outro filósofo, a importância dada aos advogados. Fazendo-se a política especialmente no espaço público, escolher e pesar as palavras é tarefa peculiaríssima do advogado. Versado nos adornamentos linguísticos, só ele conseguirá transformar em tecnicamente “bom” qualquer assunto potencialmente pernicioso.
A tribo representa um eclipse. Forma um círculo à volta do pensamento. No interior dos seus limites reina a felicidade completa. O pensamento, o livre-arbítrio, a democracia, a universalidade dos princípios são apenas crenças e mitos, eventualmente perigosos, mas, necessariamente, transitórios. Debaixo da cosmética, nada se move. Acumula cargos, fonte de status, poder e rendimento. Produz multidões de dependentes. O que ela diz de si própria alarga cada vez mais o fosso que a separa da realidade vivida pelos cidadãos.
No exterior desse círculo tudo é diferente. Há o mundo da vida concreta. Abundam contrariedades. Qualquer projecto de vida prenuncia um intrincado mundo de problemas. Volta a ganhar actualidade a previsão feita por Tocqueville, a propósito da emergência de um despotismo de tipo democrático. Aqueles que ousassem pensar, acreditando ter partidários das suas opiniões, rapidamente descobririam não os ter, vergando-se depois «como se experimentassem remorsos por terem dito a verdade». Outros, menos corajosos, decidiriam simplesmente «calar-se e afastar-se».
A tribo faz mergulhar a política nas nossas origens psicológicas mais remotas, o pensamento infantil. Dizem os especialistas que o autismo é uma das modalidades presenciais do egocentrismo infantil. A incapacidade de adaptação à realidade exterior promove naturalmente a criação de realidades imaginárias. Sentimo-nos como sendo o centro do mundo, tudo aí parece acontecer por causa de nós próprios e para inteira satisfação dos nossos desejos. Sentimentos, hoje, exacerbados pela tribo. Circulando em circuito fechado, todo o seu mundo é pleno e formidável. Resta a ficção; é como se todos fôssemos privados de inteligência, “o sonho de uma sombra”, dito poeticamente. A ausência de uma cultura política coadjuvante e de um sistema partidário competitivo facilitam, ainda mais, a realização dos desejos a esta tribo.