Parece hoje claro que a Rússia iniciou manobras de invasão e ocupação da Ucrânia. Muitos manifestaram incredulidade sobre tal possibilidade, não compreendiam “a lógica” de tal opção. E no entanto o objectivo de Putin com esta invasão é claro e sempre o foi, para quem quis ouvir e ler as pessoas que repetiram ad nauseam a explicação. Anne Applebaum escreve sobre isso há anos. E escreveu mais uma vez, ontem, num artigo no The Atlantic (tradução livre):

“Tal como os czares antes dele – como Estaline, como Lenine – Putin também encara a Ucrânia como uma ameaça. Não uma ameaça militar, mas uma ameaça ideológica. A determinação da Ucrânia em tornar-se uma democracia é um problema genuíno para o projecto nostálgico e imperialista de Putin: a criação de uma cleptocracia autocrática, na qual ele é todo-poderoso, uma aproximação ao antigo império soviético. A Ucrânia mina este projecto apenas por existir como um estado independente. Ao almejar por algo melhor, por liberdade e prosperidade, a Ucrânia torna-se um perigoso rival. Porque se a Ucrânia conseguir ter sucesso na sua luta de décadas por uma democracia, por um estado de direito e por uma integração europeia, os russos poderão questionar-se: e porque não nós também?”

Não é complexo. É na verdade muito simples, ao contrário do que muitos “geoestrategas” de sofá querem fazer crer. Não é necessário ter um curso superior de Política Internacional. Basta não ter a cabeça enterrada num balde de areia, cujos grãos são uma mistura variável de relativismo moral, cinismo, pessimismo e negação, por vezes com umas pitadas de xenofobia.

E agora o Ocidente, as democracias liberais, os estados de direito, estão à prova. Durante as últimas décadas as sociedades ocidentais sofreram uma erosão. Não dos valores que herdaram do Iluminismo, esses continuam tão presentes e vivos como sempre, são eles o motor do progresso e a razão da estabilidade dessas sociedades. Mas uma erosão dos nossos sentimentos em relação a esses valores. Embora praticados, a sua defesa, dentro e fora de fronteiras, já não possui a convicção moral de outrora, e a insistência em que existe o certo e o errado e que as sociedades podem ser agentes morais perdeu fulgor. E desta vez não estamos a falar de aventuras imprudentes em países e culturas longínquas, onde o projecto utópico de criar sociedades democráticas “do zero” demonstrou ser uma sobranceria racionalista. Agora estamos a falar da invasão e destruição de uma democracia e de um estado de direito soberano, na Europa, funcionante, com planos de integração na União Europeia. Quando a Ucrânia pedir toda a ajuda possível, incluindo militar, à Europa e ao Ocidente, devemos fazer o que é moralmente correcto. Não só porque somos agentes morais, mas porque cada vez que falhamos nessa decisão as forças autoritárias, inimigas da civilização, ganham ímpeto e desfaçatez.

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