Esta semana receberei o meu primeiro salário enquanto Investigador Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no âmbito do concurso Estímulo à Ciência 2018, entretanto rebaptizado como Estímulo 2ª Edição pela máquina de spin do Governo por motivos evidentes. Era difícil, em 2020, começar a celebrar contratos de um concurso apelidado de “Estímulo à Ciência 2018”. Anunciado em Dezembro de 2018, as candidaturas terminaram em Fevereiro de 2019, sim, leu bem, Fevereiro de 2019. Em Setembro de 2020, 18 meses (!) depois, os investigadores seleccionados no concurso começarão a receber os seus salários. As instituições científicas não têm qualquer culpa deste estado de coisas. Os prazos absolutamente terceiro-mundistas são culpa, única e exclusiva, do Governo que, como é apanágio socialista, tem uma “paixão” pela educação e pela ciência.

O sistema científico nacional está de rastos. Durante anos foi crescendo e funcionando sem pensamento estratégico. Por um lado, havia um número crescente de bolsas, alavancadas em dinheiro europeu, que permitia ir empurrando com a barriga o problema da integração dos investigadores na carreira. Por outro lado, havia o clássico sistema de cooptação, em boa hora terminado por Mariano Gago, ainda no Governo Sócrates, no qual as elites académicas se reproduziam sem quaisquer entraves. Alunos de licenciaturas ou mestrado eram convidados para assistentes nas universidades. Terminado o doutoramento, ingressavam no quadro directamente, sem qualquer concurso público. No dia seguinte à defesa da tese de doutoramento iam, literalmente, meter os papéis para o tenure. Isto não aconteceu em 1980, quando se poderia argumentar que havia necessidade de formar quadros. Mariano Gago terminou com este sistema em 2010.

Neste momento estamos num impasse. Há uma multidão crescente de investigadores descamisados, jovens e menos jovens, que não terá espaço no sistema científico. Nenhum governo teve, ainda, coragem política de assumir o custo de afirmar que, pura e simplesmente, não há espaço para tantos investigadores. No Governo da geringonça foram criados mecanismos, a meu ver errados, de tentativa de entrada definitiva no sistema por investigadores que já estavam há anos à espera “da sua vez”. O conceito de “vez” é, de resto, um pilar do sistema científico nacional. Implica que os concursos não são feitos por mérito, mas, outrossim, para premiar quem está à espera e tem cumprido zelosamente os deveres que os poderes instalados pedem.

Este cenário não é um exclusivo de Portugal. Todos os sistemas universitários do mundo funcionam, em maior ou menor grau, por cooptação. O simples facto de alguém ter estudado numa universidade de elite é um sinal no mercado que ajuda a essa cooptação. A questão, naturalmente, é de grau. Em Portugal, o grau de cooptação e de reprodução das elites existentes é altíssimo, o que faz com que, apesar de vermos os anos a passar, termos elites científicas, pelo menos na área das ciências sociais que conheço melhor, com pouca qualidade e sem projecção internacional.

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Não se premeia o mérito e, assim sendo, há incentivos perversos para começar, desde muito cedo, a trabalhar para o eventual prémio que chegará. Veja-se, a título de exemplo, os programas de apoio a doutoramentos da FCT. Portugal tem dos programas mais generosos do mundo. Qualquer investigador pode concorrer a uma bolsa para ir fazer um doutoramento no estrangeiro, integralmente pago pela FCT. Todavia, do total de bolsas atribuídas pela FCT, apenas cerca de 4% são-no para ir estudar para fora de Portugal. De certa maneira, à falta de ambição canónica dos estudantes, isto diz bem do seu realismo acerca de como poderão singrar na vida.

Poder-se-á dizer que para mudar este estado de coisas é preciso dinheiro. Muito. É verdade, mas apenas parcialmente. Existe um conjunto de medidas que, devidamente tomadas, sem quaisquer custos financeiros, ajudariam, em muito, a melhorar o sistema científico nacional. Aqui ficam algumas ideias:

  1. Proibição de contratação, sob qualquer forma, de doutorados formados na universidade. Por exemplo, um doutorado pela Universidade de Lisboa ficaria impedido, durante cinco anos, de ter qualquer relação jurídica com a universidade onde estudou. Esta medida – sem quaisquer custos – mitigaria, e muito, a endogamia existente.
  2. Obrigação legal de ter, no mínimo, 50 por cento do júri de qualquer concurso composto por académicos estrangeiros e sem qualquer ligação a universidades portuguesas. Ao trazer jurados sem quaisquer interesses nos resultados dos concursos, estaríamos a diminuir imenso o potencial para enviesamento de resultados e favorecimentos.
  3. Estabelecer um conjunto de indicadores objectivos de produtividade, sem os quais seria impossível, legalmente, a progressão na carreira, independentemente da antiguidade. Existe na Suíça. Impossível de fazer por cá?

Estas três medidas, singelas e sem custos, poderiam dar uma lufada de ar fresco à Universidade em Portugal. Sei bem que são impossíveis de implementar. A resistência interna é feroz. Todavia, mantermos a situação como está, na Universidade como noutras instituições da vida pública portuguesa, não é uma opção.

Livro da Semana

A Antígona caba de reeditar o Outono Alemão de Stig Dagerman. Com muita pena minha, até há poucas semanas, confesso que nunca tinha ouvido falar desta obra. Porém, mais vale tarde do que nunca. No Outono de 1946, Dagerman, jornalista e, mais tarde, escritor sueco, é enviado pelo jornal Expressen à Alemanha para fazer um conjunto de reportagens sobre a vida da população alemã nos meses seguintes à rendição do país, ainda esquartejado em quatro partes pelas potências aliadas. Dagerman é notável ao conseguir ir para além da culpabilização monolítica da população alemã. Em 2020, seria relativamente simples conseguir ver os matizes da situação e como a população cooperou de diferentes maneiras com o Reich, com base na sua classe social, educação e, mesmo, posicionamento geográfico. Fazer isto em 1946, ainda com a Europa em cinzas depois de seis anos de guerra total, exige uma capacidade analítica ímpar.

Cada capítulo corresponde a uma reportagem no jornal. Existem, naturalmente, passagens mais conseguidas do que outras. Gostei especialmente do capítulo sobre “Os Trâmites da Justiça”, no qual o autor descreve vários julgamentos de desnazificação (Spruchkammersitzung). Isto é, finda a guerra, foram montados, por todo o território teotónico tribunais que passavam, no fundo, atestados de bom comportamento durante os anos da guerra, indispensáveis para conseguir empregos no novo contexto. Duas provas clássicas eram apresentadas por todos os réus: terem ouvido rádio estrangeira durante a guerra, assim como terem sido “gentis” com famílias judias. Tudo, claro, envolvendo trocas de dinheiro! Vale muito a pena ler.

Um reparo a fazer à edição. A fluidez do texto da tradução funciona mal. O tradutor, Júlio Henriques, assina, de resto, um prefácio lamentável, onde elenca uma litania de males que os aliados terão infligido à Alemanha, a quem impuseram o capitalismo e a democracia parlamentar no fim da guerra. Antes tivessem deixado toda a Alemanha sob o jugo de Estaline. Em 2020 já não se justifica traduzir para português via francês. Traduza-se directamente do sueco, até porque há imensos apoios institucionais dos países nórdicos para tradução de originais desses países.