Poucos dias antes da segunda volta das eleições presidenciais francesas de 2017, Édouard Louis procurou explicar, no The New York Times, o crescimento eleitoral de Marine Le Pen. A explicação partia da sua experiência pessoal e estava em sintonia com aquilo que os politólogos têm revelado sobre as tendências eleitorais em França, nomeadamente a transferência de voto do Partido Comunista Francês para a Frente Nacional:
O meu pai sentiu-se abandonado pela esquerda política desde os anos 1980, quando ela começou a adotar a linguagem e o pensamento do mercado livre. Por toda a Europa, partidos de esquerda deixaram de falar em classe social, injustiça e pobreza, em sofrimento, dor e exaustão. Eles falavam de modernização, crescimento e harmonia na diversidade, de comunicação, diálogo social e apaziguamento de tensões.
Votar na Frente Nacional significava, para o pai de Édouard Louis, “uma oportunidade para lutar contra o seu sentimento de invisibilidade”, que resultava da extrema pobreza que marcava a sua vida e a comunidade em que vivia. No mesmo texto, diz-nos o escritor francês:
Eu queria testemunhar a pobreza e exclusão que eram parte da nossa experiência quotidiana. Sentia-me afetado e perturbado pelo facto de a vida que eu conheci em todos esses anos nunca aparecer em livros, jornais ou televisão. Sempre que ouvia alguém falar sobre a “França”, nas notícias ou mesmo na rua, sabia que eles não estavam a falar das pessoas com quem eu tinha crescido.
Esse testemunho levaria Édouard Louis a escrever Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule, mas quando procurou a sua publicação recebeu uma estranha resposta de um editor: “Ele não podia publicar o meu texto porque a pobreza sobre a qual eu escrevera não existia há mais de um século; ninguém iria acreditar na história que eu tinha para contar.”
Isto aconteceu em 2012 e simboliza o fosso que, ao longo das últimas décadas, se foi criando entre o país real e as elites cosmopolitas das capitais – sobretudo as que se consideram de esquerda e que, como vimos em “Os nossos pais”, escalaram socialmente (o facto de serem, em particular, mulheres e pertencentes a minorias não é negligenciável e será abordado mais tarde). O desconhecimento da pobreza que não veem, o desinteresse face aos serviços sociais que não usam, a desvalorização das preocupações do dia-a-dia das pessoas normais conduziram a uma erosão da relação de confiança que se estabelecia entre os partidos de esquerda e os seus antigos eleitores – ao que devemos acrescentar a viragem cultural e identitária que marcou o espaço intelectual da esquerda nas últimas décadas.
Como chama a atenção Jaime Nogueira Pinto, no primeiro número da revista Cultura XXI, para compreendermos essa viragem temos de convocar o fim da URSS, a opção da República Popular da China pelo capitalismo de direção central e o processo de desindustrialização que fez desaparecer o proletariado enquanto classe maioritária. Esvaziada pela história, a esquerda precisou de uma nova narrativa, de novos explorados. Assim:
“Os ideais igualitários permaneceram e a retórica utópica e as contradições também. Mas os processos de assalto ao poder mudaram: a luta de classes foi substituída por novos binómios opressores-oprimidos, que privilegiavam já não uma maioria de “danados da terra” mas uma pluralidade de minorias ‘críticas’ sexuais e raciais.”
A posição de Didier Eribon, em Regresso a Reims, permite subscrever esta ideia. De acordo com o intelectual francês, quando o marxismo dominava a vida intelectual francesa nos anos 60 e 70, as lutas dessas minorias sexuais e raciais eram secundárias, pois “desviavam a atenção do único combate digno de interesse, do único ‘verdadeiro’ combate, o da classe operária.” Agora, “os movimentos que se designaram como ‘culturais’ foram levados a propor outras problematizações da experiência vivida e a negligenciar, em muito larga medida, a opressão de classe.” A conclusão só pode ser a seguinte:
“Estou convencido de que o voto a favor da Frente Nacional deve interpretar-se, ao menos em parte, como o último recurso dos meios populares para defenderem a sua identidade coletiva e, em qualquer caso, uma dignidade que eles sentiam ser permanentemente ignorada, desta feita por aqueles que os tinham no passado representado e defendido.”
Em bom rigor, todas as sociedades parecem organizar-se em torno do binómio elites (de vários tipos) vs. maioria da população. Mas o modo como esses dois elementos se relacionam variou sempre em termos históricos, podendo verificar-se uma maior ou menor consonância de interesses. A particularidade dos nossos tempos é que o sistema democrático revela de modo muito transparente os termos dessa relação. Isto significa que se torna impossível às elites recusarem saber que o fosso que as separa da maioria da população está a aumentar: as mudanças eleitorais e o surgimento ou crescimento de certos partidos revelam-no com clareza.
Este mérito do regime democrático transporta, então, o problema para outro plano, que é o de saber de que modo as elites escolhem responder a essa informação. Elas podem optar por reaproximar-se dos eleitores e tentar compreender as suas preocupações; ou podem reclamar, com arrogância, o seu conhecimento da verdade e do sentido do progresso. A última década tem sido marcada pela segunda opção – o mesmo é dizer, pelo crescimento do sentimento de invisibilidade de uma parte crescente da população.
P.S.: Vale a pena ouvir quase todos os episódios do podcast 45graus de José Maria Pimentel, mas gostaria de destacar a entrevista realizada muito recentemente a Ricardo Costa: o futuro dos meios de comunicação social num mundo digital é um tema incontornável em momento de crise democrática, mas é a parte final do episódio que merece maior atenção. Sobre o tema de como os jornalistas devem lidar com políticos “populistas”, Ricardo Costa tem uma posição refrescante: os jornalistas devem tentar compreender estes fenómenos, ao invés de julgá-los liminarmente. O que é intrigante é que, em Portugal, haja necessidade de um esforço tão grande por parte dos jornalistas, ou daqueles que refletem sobre a política, para tentarem compreender o fenómeno Chega. Quão longe é preciso estar da vida real dos portugueses para ser necessário esse esforço?