Há já alguns anos, comecei na Antena 1 um programa com o Ruben de Carvalho chamado Radicais Livres, um calambour que achámos adequado.
Radicais livres
O Rúben e eu éramos radicais, pelo menos no léxico da política portuguesa, então determinada pelo centrão – ele à esquerda, eu à direita, ele comunista, eu nacionalista; e éramos livres – ele livre, apesar da sua “Filarmónica” (como chamava ao Partido Comunista), eu livre porque nunca tive nem as qualidades nem os defeitos necessários à vida partidária. Éramos também os dois convictos, dispostos a afirmar as nossas convicções e a pagar por isso, e os dois lúdicos e curiosos por muita coisa. Foi uma experiência muito interessante, com discussões lexicais, em que íamos humoristicamente procurando acordo para nos entendermos e conseguirmos conversar sem exasperar os ouvintes. Quando o Ruben falava do Estado Novo, chamava-lhe “regime fascista” e eu “regime autoritário”, concordámos em chamar-lhe “salazarismo” ou “regime salazarista”, que não repugnava a nenhum dos dois; e quando o Rúben dizia “guerra colonial”, para eu não ter de contra-atacar com “guerra do Ultramar”, concordámos em chamar-lhe “guerra de África”. No meio de tudo isto, ficámos amigos e tive um profundo desgosto quando ele morreu por indesculpável descuido hospitalar. O programa era moderado pelo Rui Pego e, depois da morte do Ruben, continuei com o Pedro Tadeu, de outra geração, mas também do PCP e parte de uma cultura política, literária, intelectual bem diferente da incultura que agora por aí vemos arremessada aos gritos sobre coisa nenhuma. Quem actualmente nos modera, ou tenta moderar, é a Maria Flor Pedroso.
Vem isto ainda a propósito do 50º aniversário do 25 de Abril. O Ruben era, desde a adolescência, militante do PCP, esteve preso várias vezes durante o salazarismo e falava desse tempo com tranquilidade, com objectividade, sem espalhafato. Não entraria de certo em fantasiosos delírios se aqui estivesse agora a comemorar a data.
No 25 de Abril de há cinquenta anos, eu estava na tropa, a aguardar embarque para Angola. Tinha trocado com um camarada meu mobilizado, porque sendo eu um defensor do então “Portugal ultramarino” mal seria se não pusesse lá os pés. Quando do golpe, soube logo, dado o meu passado político de nacionalista na Faculdade de Direito, que não escaparia quando a Esquerda e o recém-criado COPCON iniciassem as suas detenções de “suspeitos”. Não achei isso esquisito porque me opunha a eles e eles sabiam-no. Podia não ser muito democrático e estar longe das “amplas liberdades”, mas percebia-se. Vieram, efectivamente, prender-me no 28 de Setembro, a famosa inventona em que os quadros da “nova direita portuguesa” foram neutralizados – presos ou forçados ao exílio. Fiquei quatro anos no exílio, mas tive muitos correligionários e bastantes amigos presos durante o PREC.
Depois disso, talvez por sermos uma nação muito antiga, ficámos, de um lado e de outro, vivos. Éramos agora, mais ou menos moderados pelo tempo e pelas circunstâncias, radicais em liberdade. Antigamente, os radicais eram sobretudo de esquerda; hoje, com o passar do círculo político, é a esquerda que tende a ser mais situacionista, moralista, convencional, acomodada, mesmo entre pueris e vistosos “activismos”.
Abril no Luxemburgo
No passado 23 de Abril estive no Luxemburgo, por iniciativa do nosso embaixador no Grão-Ducado, Pedro Sousa e Abreu, para um debate sobre a revolução com o Fernando Rosas, outro radical de esquerda, fora do PCP, preso antes de Abril e preso depois de Abril, quando os militares do MFA resolveram fazer uma razia à extrema-esquerda. Fomos contemporâneos.
No debate, estivemos de acordo num ponto: até ao 25 de Novembro, ou mesmo até à constituição de 1976, não havia em Portugal uma democracia estabilizada, um estado de direito: havia um poder militar que oscilava à esquerda e à direita, que ia actuando entre golpes e contra-golpes, que prendia e libertava “a olho”. No 25 de Novembro houve um Thermidor; de qualquer forma, a política portuguesa deixara de ser autónoma, com os Estados-Unidos, a União Soviética, a Europa, através da França e da Alemanha, a mandarem para cá espiões, agentes e dinheiro para os partidos. Muito dinheiro, que chegou ou não chegou ao destino.
Na discussão, com a sala do Cercle Cité cheia, falámos do nosso dia 25 de Abril, das nossas percepções dos primeiros sinais do movimento e das horas que se seguiram, entre vencedores e vencidos não-convencidos. A grande maioria da sala, portugueses emigrantes no Luxemburgo – uma comunidade de mais de 100 mil pessoas numa população de 650 mil –, seguia com atenção, expectativa e abertura o debate; alguns mais exaltados com a efeméride e uma meia dúzia de cravo vermelho ao peito, como que para marcar território. Quando vieram as perguntas, foi notória a agitação, mas quer o Fernando Rosas quer eu fomos evitando que se desse espaço à “intolerância dos intolerantes”.
O moderador, um jovem professor local, perguntou-nos depois pela nostalgia, pelo papel da nostalgia – a minha, que supunha ser a nostalgia do antigo regime, e a do Fernando Rosas, que supunha ser a nostalgia do PREC, de um tempo em que a revolução ainda parecia possível; e talvez houvesse também uma nostalgia comum, a nostalgia de um tempo agitado e desacomodado em que vivemos com intensidade projectos, bons ou maus, possíveis ou impossíveis, mas que, apesar de tudo, transcendiam o nosso umbigo. Não nos alongámos muito.
Novembro
Tinha já contado esse meu tempo num romance, Novembro, sobre a vida da sociedade portuguesa antes do 25 de Abril e sobre o que aconteceu aqui, na emigração, em Espanha, e em Angola até ao 25 de Novembro, através das histórias e dos destinos de portugueses de muitas paragens.
O mês de Novembro de 1975 foi o fim, real e simbólico, de duas utopias: o fim do Portugal pluricontinental e o fim da revolução. A 11 de Novembro, com a independência de Angola, fechou-se o ciclo do Império português, iniciado em Ceuta, em 1415: 560 anos de “dívidas” para com povos que colonizámos, evangelizámos – e com quem comerciámos e nos misturámos – e que agora devemos “indemnizar”; e o fim da possibilidade de uma nação plurirracial e pluricontinental, que também deixou muitos órfãos – candidatos a exigir “reparações” ao Portugal da “descolonização exemplar”, se entrarmos por aí. E a 25 de Novembro, com a contenção pelas companhias de Comandos de Jaime Neves dos revoltosos da Polícia Militar, com a discreta não-intervenção dos fuzileiros (próximos do PCP), com Ramalho Eanes e Melo Antunes, fechou-se também o ciclo revolucionário. Quinze dias depois de acabado o Império, acabava a revolução. Os sonhos românticos e radicais das nossas gerações acabavam também.
Não sei se é para festejar, se é para lamentar, mas é, com certeza, para lembrar – longe de vitimizações e maniqueísmos e para além do reality show da propaganda a que nenhum regime foge, com o país mobilizado para as comemorações, e o povo, como sempre, a juntar-se à festa e a encher as ruas. E falar da História, da nossa e da dos outros, com alguma objectividade, serenidade e realismo será talvez a única maneira de o fazer.