Na primeira metade da década de 1980, um soldado da (então) Guarda Fiscal matou, com um tiro desferido à queima-roupa com a sua arma de serviço, na zona do Jardim Constantino em Lisboa, um adolescente com quem, por um motivo fútil, se travou de razões.
A 3 de Novembro de 1988, um cabo cozinheiro do Centro de Instrução da GNR, na Ajuda (Lisboa), disparou sobre os seus camaradas formados na parada e matou quatro deles.
A 7 de Maio de 1996, no Posto da GNR de Sacavém foi morto um detido, decapitado, e corpo e cabeça escondidos em locais diferentes.
Três exemplos, de memória, para mostrar que casos como o sucedido no aeroporto de Lisboa não são inéditos. Seja devido a formação e gestão deficientes, seja consequência de sequelas psicológicas do contacto frequente com situações de tensão extrema ou da facilidade de acesso a armas de fogo, aconteceram, acontecem e é provável que voltem a acontecer.
O que é inédito — fazendo fé nos relatos vindos a público — é o tempo de ocultação dos factos.
Factos desta gravidade, envolvendo directamente três funcionários e, indirectamente, vários outros, ocorridos no ambiente de um aeroporto internacional, só puderam ser ocultados durante duas semanas numa organização que atingiu o zénite da bandalheira, o que a sucessão de casos de corrupção já anunciava.
Este estado de bandalheira tem causas e responsáveis.
As causas são a persistência de um modelo organizacional que continua profundamente marcado por uma balofa influência jurídica que resiste e contraria a adopção de modalidades de gestão capazes. Não há adequados manuais de procedimentos — os protocolos que hoje em dia nenhuma organização minimamente eficiente dispensa. Não os havendo, o desnorte é enorme e a responsabilização impossível. Mas a causa maior — o pecado original — persiste no atomizado modelo policial português. Uma miríade de organizações a disputarem o espaço informativo para se promoverem, a concorrerem pelos favores da tutela, a pugnarem pelas suas corporações, mas sem massa crítica para garantirem uma eficaz formação ou para beneficiarem de economias de escala numa gestão partilhada de recursos.
Os responsáveis são os que mataram. Mas também os que deixaram matar, os que souberam que foi morto e se calaram. Os que já tinham reparado que fulano ou beltrano não se andavam a comportar da melhor maneira, mas não estiveram para se chatear. As diversas camadas de (ir)responsáveis hierárquicos que, há muito, assobiam para o lado. E o poder político que tudo isto abençoa.
Não serão duas ou três demissões, nem duas ou três condenações, que resolverão o problema. É preciso ir mais fundo.
P.S.: Certas elites lidam mal com os chuis, tal como lidam mal com trolhas e picheleiros — quando precisam deles lá fazem um esforço para os aturar, mas, em geral, não os suportam. Ao contrário de um comentador com pergaminhos que, na altura, num dos canais abertos de televisão, se mostrou muito enxofrado por os suspeitos, em vez de terem ficado em prisão preventiva, terem ficado com pulseira electrónica – como se uma medida de coacção devesse funcionar já como pena e deixando presumir que, tratando-se de chuis, não havia que estar com minudências jurídicas — continuo a presumir inocentes os suspeitos e, mesmo estando a funcionar muito mal, continuo a preferir a justiça dos tribunais à da informação-espectáculo.