Enquanto sociólogo, existe a necessidade constante de desvendar a complexidade do mundo. À Sociologia exige-se, pois, moderação, dado que a nossa intenção é compreender de forma profunda quais os padrões e as singularidades que regulam as relações sociais, tarefa que não se conclui com exageros emocionais ou moralistas. Por isso mesmo, quando esta ponderação não é revelada e uma carga ideológica emerge, devemos aperceber-nos que, nessa altura, já não nos encontramos em plena investigação científica, o que requer uma intervenção sobre as nossas próprias práticas enquanto profissionais da área.
No entanto, existem também momentos em que devemos pugnar pela valorização dos conhecimentos produzidos na nossa própria esfera disciplinar. Por outras palavras, há certos comentários e atitudes em relação aos quais os nossos saberes e as nossas experiências impõem que não nos resignemos ao silêncio. Porque tal silêncio implicaria a descredibilização de uma ciência, em particular, e da ciência no seu todo. É neste contexto que denuncio, enquanto cidadão e sociólogo, o que aconteceu no passado dia 5 de julho, na rubrica “Análise Criminal” do programa Casa Feliz, da SIC.
Numa secção televisiva habitualmente pejada de juízos que, no mínimo, assentam no senso comum mais pacífico e, no máximo, entram no campo das generalizações apressadas e da ofensa – o que, curiosamente, contrasta com a presença e a diversidade de qualificações académicas dos comentadores, que vão do Direito à Psicologia e incluem mesmo uma socióloga – amiúde pouco se consegue retirar no atributo de análises sérias e não tendenciosas. Contudo, se algumas considerações se apresentam como meramente bacocas ou até desconexas à situação sob apreciação, surgiu um ponto de vista de um dos participantes que requer um olhar e uma avaliação mais atentos. Estava eu a fazer zapping durante uns segundos quando vejo, a dado momento, num comentário sobre um caso de homicídio, a Doutora Paula Varandas, advogada, a proferir a seguinte frase: “eu não gosto desse termo”. De que termo falava? “Minorias”. Após esta afirmação, Diana Chaves, moderadora da rubrica, questiona Maria José Núncio, socióloga, se, de facto, existem minorias ou não na sociedade, ao que aquela lhe afirma que obviamente que sim. E tem, naturalmente, toda a razão.
Núncio invoca alguns argumentos para justificar a sua posição, mas Varandas acrescenta que, se existe escola pública e obrigatória, uma pessoa de um bairro social, por exemplo (e sim, ao contrário do que é dado a entender no espaço de comentário, este é um conceito com que todos estamos familiarizados pelos estereótipos sobre ele criados), não tem razão para ser uma pessoa menos qualificada ou integrada, dado que o Estado lhe entrega todas as ferramentas necessárias para este indivíduo prosperar na vida. Ora, assistir a estas interpretações sobre o funcionamento da sociedade, que ou se encontram ingenuamente iludidas ou são política e ideologicamente propositadas, é frustrante para uma pessoa formada em Sociologia. Desvaloriza o trabalho realizado pelos profissionais desta disciplina, na qual uma das maiores preocupações é, precisamente, o estudo e a intervenção sobre as desigualdades existentes entre grupos sociais (o que implica, por motivos lógicos, existir uma maioria que domina e uma minoria de alguma maneira dominada). Imagino, pois, algum desgosto que Maria José Núncio, apesar de amiga de Paula Varandas, possa ter sentido naquele momento, dado que a amizade não tem de implicar o toldar do pensamento.
É necessário tomarmos atenção para uma primeira visão que requer uma clara desmistificação: o conceito de minoria/s. Este não alberga somente as pessoas que vivem territorialmente marginalizadas ou economicamente desfavorecidas – mas sim, claro, também inclui estes conjuntos da população. Na verdade, as minorias podem ser muito diferentes entre si e, até, muito heterogéneas entre os elementos que pertencem a uma mesma minoria, partilhando, não obstante, as mesmas desvantagens sociais, quaisquer que elas sejam. Por exemplo, uma pessoa de uma minoria pode encontrar-se num bom patamar económico e ser discriminada sexualmente; pode ter profundas qualificações e não alcançar um cargo elevado devido à cor da pele; ou apresentar imensas qualidades e ainda assim não ser levada a sério por ser mais jovem ou mais idosa. É estranho ter de explicar isto que parece ser algo tão simples e com que o cidadão comum lida diariamente. Por exemplo, ainda há pouco o Observatório das Desigualdades e o Observatório do Emprego Jovem nos mostraram que, em Portugal, um homem licenciado aufere um salário maior comparativamente a uma mulher doutorada. Isto não são teorias conspirativas, mirabolantes, fantasiadas para agradar as minorias: são disparidades que as pessoas vivem e sofrem no seu quotidiano. São reificações das desigualdades, tornadas concretas e palpáveis.
Aliás, sendo a Doutora Paula Varandas uma mulher, não é obrigatório que o seu trabalho já tenha sido inferiorizado, ou que a roupa que vestia tenha sido alvo de comentários provocadores e injuriosos, ou que a sua perspetiva tenha sido desconsiderada quando a expunha num círculo predominantemente composto por homens, apenas pela sua condição feminina. Não, não é obrigatório; mas é provável. E são essas probabilidades que consubstancializam a distribuição de poderes, onde as regras do jogo favorecem quem tem as condições coletivamente mais aceites como benévolas. É esta maior tendência de uma mulher sofrer perdas salariais e assédios morais e sexuais, por exemplo, que as torna, também, numa minoria. Não necessariamente numa minoria frágil, mas sim fragilizada; nem numa minoria passiva e que necessita de caridade, mas sim que carece, de modo contínuo, de provar o seu valor para ser aceite e incluída.
Já advogava Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX: os gostos, sim, discutem-se. Pois neles são miradas críticas e institucionalizadas hierarquizações. Recuperando o argumento polémico de que a escola pública é condição suficiente para o sucesso das pessoas, Maria José Núncio estava certíssima ao contrariá-lo quando disse que a própria escola reproduz as desigualdades existentes fora da mesma. A escola não é apenas um espaço arquitetónico, é também um local de socialização e, consequentemente, de interiorização das regras da sociedade, inclusive as discrepâncias nela plasmadas. Investigadores como Basil Bernstein provaram como o sistema escolar é um recinto do “gosto pelo médio”, isto é, o aluno médio, com posses médias e conhecimentos médios consegue chegar ao elevador social que a escola propicia. O estudante de classes mais elevadas ainda mais bem-sucedido é nestas condições. É a força dos “códigos elaborados”, da linguagem mais teórica e académica. Mas em que estado fica o aluno com menos posses, com “códigos restritos”? Que tem linguagens, comportamentos e saberes criados no seio da sua classe social, porém, que a escola não reconhece nem elogia? É particularmente insólito que a Doutora Paula Varandas, sendo também educadora, não se depare com estas realidades, ou pelo menos não as detete, e tenha um pensamento tão fechado perante tantos alunos com os quais se relaciona e que não são, de modo algum, todos iguais. Todos trazem bagagens distintas e não são só as aulas unilaterais, num estilo ainda tradicionalmente português, que tudo farão pelo êxito destes meninos e meninas e jovens. Teremos de ser todos nós, toda a sociedade, a colaborar com eles para proporcionar maior inclusão social e maior igualdade ou equidade. E a especialista não pode deixar que o conservadorismo que ainda se encontra enraizado em alguns juízes, juristas e advogados a cegue perante aquilo que é tão óbvio para quem estuda e/ou pratica educação. Enquanto as letras dos judicialismos estagnam, a realidade evolui e exige novas apreciações da lei e do seu valor.
Decerto que não devemos “dar uma no cravo e outra na ferradura”. Com a luta por maior justiça social a ideia não é transformar os oprimidos em opressores e vice-versa. Por mais que dúvidas existam sobre alguns comportamentos mais extremistas de algumas minorias, alguém de bom senso tem assente que o Estado deve acautelar as necessidades tanto dos mais fragilizados como de todos os outros. Todavia, perguntemos a alguém de uma minoria se gostaria de ter nascido e vivido até agora como minoria. Se uma mulher gosta de receber menos do que um homem fazendo exatamente as mesmas coisas; se uma pessoa LGBTQI+ aprecia não poder dar um beijo a outra pessoa na mesma condição sob pena de ouvir julgamentos lamentáveis e cruéis; se uma pessoa negra adora já ter sido olhada sob suspeita apenas pela sua cor da pele; se um jovem ou um velho se enamoram com a ideia de as suas opiniões poderem cair no ridículo apenas devido à sua idade; se um indivíduo com sobrepeso aplaude ser vítima de bullying pela sua condição corporal, em vez de ajudado na superação do seu problema. Não, Portugal não é misógino, racista, LGBTQI+fóbico, idadista ou gordofóbico; mas conserva olhares, palavras, atitudes que não aceitam completamente estes seres humanos quando colocados lado a lado com outras pessoas de características maioritárias. Então, se um pedaço do pano de Jesus tem as mesmas propriedades que o pano inteiro, significa que estas bolsas de discriminação não deixam de tornar Portugal um país com aqueles adjetivos.
Quando se é educador, como eu e a Doutora Paula Varandas o somos, temos de ter muita atenção àquilo que estamos a transmitir aos mais novos que temos diante de nós. Poderá estar ali alguma criança ou jovem de uma minoria, que até nem sabe o que significa o conceito, no entanto, que sofre de algum tipo de violência diária pelas suas características de género, étnicas, sexuais, religiosas, corporais ou económicas, entre outras. Não é humanamente válido invalidar-se o sofrimento daquele ser ainda em construção. Pois que a educação é empatia e amor.