O Papa Francisco esteve mais uma vez sob fogo cruzado por parte de um grupo reduzido mas ruidoso de chamados teólogos conservadores. Em Roma, a dita correção filial não teve nenhum impacto, até porque os únicos subscritores minimamente conhecidos são o ex-presidente do banco do Vaticano e o Superior Geral da Fraternidade de S. Pio X. Basta fazer-lhes um Google e percebe-se porquê. Por isso, correções filiais à parte, interessa ir ao tema que tanto alarido tem provocado nalguns sectores da Igreja.

O que está, afinal, em jogo na tão badalada questão da possibilidade ou não de acesso aos sacramentos por parte dos cristãos que se divorciaram e voltaram a casar civilmente (“recasados”)? Apesar de opiniões contrárias, já aqui referi mais do que uma vez que esta questão foi alvo de debate na Igreja dos primeiros séculos e houve lugares e tempos que permitiram soluções muito parecidas com a que o Papa Francisco propõe na Exortação Apostólica Amoris laetitia (AL). Mas remetamo-nos aos últimos tempos da práxis católica.

Até ao pontificado do Papa João Paulo II, as expressões mais usadas para referir a situação das pessoas “recasadas” eram que viviam em pecado mortal ou que eram adúlteras. Obviamente, estas pessoas, tratadas como tal, não deveriam aparecer juntas em público nem muito menos ir à Missa juntos. Protocolarmente, era impossível um papa, bispo ou padre receber um casal nesta situação. Mesmo para as famílias católicas tradicionais (não necessariamente tradicionalistas) era de bom tom não receber em sua casa casais em tal situação. Com esta atitude não se pretendia condenar as pessoas, até porque eram naturalmente recebidas e acolhidas individualmente. Ao não abrir as portas de casa aos casais recasados, sublinhava-se que não se aprovava a sua situação de vida, para lá da consciência pessoal de cada um.

De onde vem esta atitude? O matrimónio cristão é um sacramento. Um sacramento é um sinal. Este sinal representa na vida concreta a relação de amor entre Deus e a humanidade, entre Cristo e a Igreja. Tal como este amor é indissolúvel, assim também o sacramento do matrimónio. Mesmo que duas pessoas se separem fisicamente, e até se divorciem, o sacramento permanece porque o que Deus uniu, o ser humano não pode separar. Por isso, os separados ou divorciados podem aceder aos sacramentos. A questão surge quando entra uma terceira pessoa no cenário. Se o casamento é “até que a morte nos separe”, pode uma pessoa viver maritalmente com outra, tendo sido anteriormente casada? Ora, por definição, alguém casado que tenha relações sexuais com outra pessoa que não o cônjuge, pratica adultério. Pecado grave.

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Esta era a lógica da Igreja até João Paulo II. Uma praxis orientada acima de tudo pela mente canónica que, na melhor das hipóteses, lidava com estas situações como situações de concubinato. (O teólogo Joseph Ratzinger, nos anos 70, propunha que uma atitude pastoral nestes casos talvez pudesse vir saudavelmente a sobrepor-se à atitude canónica – importante, mas não exclusiva).

Mas S. João Paulo II, na Exortação Apostólica Familiaris consortio (FC), em 1981, vem baralhar aquela lógica. A grande, mas saudável, confusão foi então; não agora. O “culpado” é o papa João Paulo II; não o Papa Francisco. Depois de afirmar que a Igreja não pode abandonar estes cristãos, ainda por cima porque muitos deles, depois de um casamento “irreparavelmente destruído”, vivem agora em novas núpcias com filhos, João Paulo II exorta “vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida”. Os tais adúlteros passavam agora a ser convidados a participar em toda a vida da Igreja, permanecendo tal. Inclusivamente exortava-os “a frequentar o Sacrifício da Missa”. Quanto à Igreja, “Reze por eles, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança” (todas as citações: FC 84).

No entanto, afirma S. João Paulo II, a Igreja continua a não permitir o acesso aos sacramentos por parte dos recasados pelas razões acima expostas.

Dá-se aqui um salto coperniciano. A partir deste documento, as expressões “pecado grave” ou “pecado mortal”, bem como o epíteto de “adúlteros” deixam de se aplicar aos recasados. Passou-se a usar a expressão “situação irregular”. Quer dizer, estas pessoas não vivem em comunhão com a regra da Igreja. Apesar de afirmar que vivem “em contradição com a indissolubilidade do matrimónio”, João Paulo II nunca utiliza a palavra “pecado”.

Duas razões, pelo menos, concorrem para que a Igreja não considere adúlteras estas pessoas desde a FC. Uma, é que S. João Paulo II, obviamente, não as considera adúlteras. Não teria o Papa um discurso destes, não só de condescendência, mas de autêntico acolhimento, a pessoas que insistem em viver no seu pecado de adultério e não mudam de vida. A segunda razão é aquela que leva Woityla a escrever este número da sua exortação: a própria experiência humana. Isto é, todos nós sabemos o que é o adultério e todos nós sabemos o que é um adúltero.

Ora, uma pessoa, por exemplo, que tenha tido um primeiro casamento de um ano aos dezoito ou vinte anos de idade e que, depois dessa experiência tantas vezes traumática, como pode ser a de uma relação “irremediavelmente destruída”, vive há trinta anos com um segundo cônjuge com quem tem filhos e a quem é fiel, esta pessoa não cabe dentro do conceito de adúltero. Uma pessoa adúltera é, além do mais, mentirosa, com vida dupla, que não respeita o marido ou a mulher nem os filhos. Não, um casal que constituiu uma família onde há verdade, liberdade, fidelidade e respeito mútuo provados ao longo do tempo, este não é um casal de adúlteros.

Reconhecendo este facto, João Paulo II deu um grande passo. Mas criou uma situação confusa. Com a sua atitude solicitamente pastoral, abriu uma frincha que agora, finalmente, depois de mais de 35 anos de experiência, Francisco pode concluir. O que aconteceu é que ficámos sem instrumentos conceptuais para lidar com estas situações. Antes eram adúlteros e, como tal, não podiam comungar. Com João Paulo II deixaram de ser considerados adúlteros, mas também não podem comungar. Porquê?

Pelo menos, pensávamos que a Igreja não os considerava adúlteros. Mas agora, com a possibilidade proposta pelo Papa Francisco de, mediante um percurso de discernimento acompanhado, pessoas que vivem nestas situações possam vir eventualmente a aceder aos sacramentos (e sim, ele propõe-no claramente), as expressões antigas voltaram. Nunca se falou tanto em pecado grave ou mortal e em adultério como nas atuais reações à AL de Francisco. Afinal, os fieis seguidores de João Paulo II apenas adormeceram estes conceitos para os acordarem agora. Afinal, nem a Woityla eram tão fieis. Que lhes perdoe o Papa santo.

É interessante que os críticos da possibilidade de acesso aos sacramentos por parte dos recasados, aceitam de bom grado o nº 299 da AL (como aparentemente já aceitavam o nº 84 da FC), em que o Papa Francisco afirma que se deve abrir mais à participação dos recasados na vida da Igreja. Para tal, afirma Bergoglio, é necessário superar formas de exclusão a nível litúrgico, pastoral, educativo e institucional. Ou seja, estas pessoas podem e devem ser convidadas a participar como leitores ou acólitos, como formadores ou catequistas, assumindo responsabilidades a nível institucional na Igreja. Concordar com esta atitude e considerar estas pessoas como adúlteras é absolutamente inconsistente! Não se convida um adúltero público a servir ao altar ou a ler na Missa, muito menos que seja catequista e sirva de exemplo aos mais novos.

O Papa Francisco, recolhendo a contribuição da generalidade dos bispos do mundo inteiro representados no Sínodo, fez o que sempre se fez na história da humanidade e na história da Igreja. Deu um passo em frente na evolução natural dos conceitos e da pastoral. Tal como o fez João Paulo II ao acolher os recasados até onde então era possível acolher. João Paulo II, lendo os sinais dos tempos, percebeu que havia que alterar a atitude pastoral para com as pessoas que viviam tal situação. Francisco, depois de 35 anos de experiência, lendo os sinais dos tempos, viu que este era o tempo de dar mais um passo em frente. Fez o mesmo que João Paulo II.

Não deixa de ser interessante que para os chamados “conservadores” há dois baluartes dos quais não abdicam: liturgia e moral sexual. Tudo o resto, como partilha, preocupação social, construção do Reino de justiça e Paz sonhado por Jesus, isso – que afinal, é 90% do evangelho – são pormenores. No capítulo 19 do evangelho de Mateus, Jesus fala do adultério. E o versículo 9 deste capítulo é o invocado para defender o não acesso aos sacramentos por parte dos recasados, considerando-os adúlteros, porque Jesus o afirma literalmente. No entanto, precisamente no mesmo capítulo, apenas uns versículos adiante, Jesus diz que um rico muito dificilmente entrará no Reino dos Céus, que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus (Mt 19, 23-24). Sim, Jesus afirma-o literalmente. Mas aqui, enfim, temos que interpretar. Quem é que é rico? E quem que é alguém para considerar se outra pessoa é rica ou não? É verdade, o sistema mundial é injusto, mas o que posso eu fazer? Que culpa tenho eu que haja pessoas a passar fome? Até pago os impostos…

Tal como os seus antecessores, Francisco lê os sinais dos tempos, reza a partir do evangelho, é fiel à tradição da Igreja e age conforme. Não haveria maior infidelidade a Jesus Cristo e à tradição da Igreja se um Papa se limitasse a repetir o passado. Por isso, nenhum o fez. Por isso, Francisco se recusa a fazê-lo.

Sacerdote jesuíta