Mesmo para quem, por força de andar nisto há muitos anos, tem a noção da escala de grandeza de vários números do Orçamento do Estado, a generalidade dos montantes nominais diz muito pouco.

Dizer que o Ministério da Defesa terá uma despesa consolidada de 2.150 milhões de euros ou que os encargos com o subsídio de desemprego deverão atingir 1.467 milhões de euros não diz quase nada a quase ninguém. Provavelmente nem os ministros das áreas os saberão na ponta da língua. Nem têm que saber.

Mas se nos disserem que o orçamento para a Defesa ou para o subsídio de desemprego aumentam 10% ou caem 10% começamos a ter uma noção mais importante do que o valor nominal, que é a da evolução e da dinâmica dos números. É a diferença entre ver uma fotografia, que nos regista uma fracção de segundo, ou ver um filme, onde percebemos a evolução temporal. Uma fotografia de um automóvel não nos diz se ele está parado ou em movimento. Mas um filme mostra-nos se ele está a andar, em que sentido e a que velocidade.

Com a avaliação de números e indicadores acontece algo semelhante. Muitas vezes, mais importante do que saber o seu montante em euros é perceber em que direcção estão a evoluir e se o fazem depressa ou devagar.

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Por isso é que na economia, nas empresas ou nas estatísticas se recorre tanto a variações, percentagens ou outros rácios. A inflação é uma taxa de crescimento (dos preços), a evolução da economia é outra (do PIB) e o desemprego é medido em percentagem (da população activa).

No Orçamento do Estado também é assim e o recurso a variações nominais ou percentuais é a forma mais directa de tirar algumas conclusões e fazer entender melhor as opções políticas que cada documento reflecte.

Mas como diria La Palisse, para haver um trajecto tem de haver um ponto de partida e um ponto de chegada. Se eu disser que alguém acaba de chegar ao Porto nada estou a dizer sobre a direcção que essa pessoa tomou. Se veio de Viana do Castelo, andou de Norte para Sul. Mas se partiu de Coimbra, viajou na direcção contrária.

Do mesmo modo, para avaliarmos uma variação numa rubrica orçamental temos de ter um montante de partida e um montante de chegada. E são ambos importantes. Para sabermos se há reforço ou corte de verbas numa determinada área temos que saber duas coisas: quanto vamos ter e quanto estamos a gastar agora.

Ora, o truque que este governo fez na elaboração e apresentação do orçamento para o próximo ano foi simples: mostrou o número que prevê para as rubricas da despesa em 2017 mas manipulou o ponto de partida da comparação. Em vez de fazer a comparação com a mais recente previsão da despesa deste ano, que é a que temos agora em cima da mesa, optou por ir buscar as previsões iniciais do orçamento de 2016, que já levam dez meses de divergência com a realidade.

Assim, transformou cortes em acréscimos, acréscimos em cortes, variações grandes em pequenas e pequenas em grandes, como nos mostra a tabela.

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Escrevo “manipulou” porque não é possível chegar a outra conclusão. É impensável que o Governo não tenha elaborado o orçamento a partir das mais recentes estimativas de execução deste ano. Por isso, os números estiveram sempre disponíveis e em permanente actualização ao longo do processo de elaboração do orçamento para 2017. Se não foram colocados no relatório entregue ao Parlamento, enviado para Bruxelas e apresentado ao país só pode ter sido por opção deliberada do governo. Prova disso é que não demorou muitos dias a apresentá-los quando começaram a ser exigidos. A falha era tão flagrante que não havia como não fazê-lo.

Mas se não há nenhuma alteração com os números previstos para 2017, que se mantiveram inalterados, então qual terá sido a intenção?

Precisamente por causa da percepção pública em relação a alguns números. O caso mais flagrante será o da Educação, já aqui tratado por Alexandre Homem Cristo.

Voltando à metáfora do filme e da fotografia, se dissermos que o montante destinado à Educação no próximo ano será de 6023 milhões de euros temos o registo instantâneo que pouco nos diz. Mas agora vamos acrescentar dois pontos de partida alternativos. Um, que o governo preferiu “vender” no Orçamento, comparava esse número com o montante que previa que o sector viesse a gastar em 2016, que era de 5843 euros. Se assim fosse, a Educação teria um reforço de 179 milhões de euros no seu orçamento (+3,1%). Mas o que se passou é que a Educação irá gastar mais este ano do que o governo previa em Janeiro. Em vez dos 5843, serão 6192 milhões de euros. E quando se pega neste número, o mais próximo da realidade que temos neste momento, o que verificamos? Que a Educação, afinal, terá um corte orçamental de 170 milhões de euros (-2,7%).

Este truque é básico, assente num esquema aritmético primário. Não estão em causa os valores de 2017 nem a sua maior ou menor consistência, porque disso saberemos durante o próximo ano.

A única coisa que o governo pretendeu foi manipular a discussão política e pública do Orçamento do Estado. Para isso, serviu-se da esperteza de ganhar alguns dias sem os números reais, para que pudesse contar a sua história baseada em números falseados — sim, falseados porque não são os adequados para avaliar o exercício orçamental.

Uma coisa é apresentar um orçamento que reforça a Educação em 3,1% e a Saúde em 3,7%. Outra é apresentar o mesmo orçamento com um corte de 2,7% na Educação e um aumento de apenas 1,1% na Saúde. No primeiro caso estamos a falar de um desvio de 350 milhões e no segundo de 250 milhões. Ou seja, em duas das suas áreas-bandeira o governo enganou o país, dizendo que ia lá colocar mais 600 milhões do que realmente vai gastar.

Isto é triste e grave pelo que revela de tentativa de manipulação. Não há defesa metodológica para isto. Aliás, no mesmo documento o governo já preferiu utilizar a melhor estimativa que tem, por exemplo, para o défice orçamental, que é de 2,4%, em vez dos 2,2% que estavam inscritos no OE2016. Claro, assim pretende ficar melhor na fotografia com um corte previsto mais pronunciado para o défice. E o Orçamento de 2016 foi também elaborado por este governo seguindo a boa prática de utilizar como termo de comparação os dados mais recentes disponíveis.

Tristeza acrescida é ver uma fonte oficial do Ministério da Educação defender esta prática manipuladora, dizendo isto (ao Expresso, no caso): “a comparação entre anos orçamentais deve ser feita entre orçamentos iniciais ou entre orçamentos executados e não entre realidades que são distintas”. Confirma-se então o que se suspeitava dos últimos dias: a ética e o mínimo de respeito pela verdade não são valores que abundem por ali. Ficaram certamente com horário zero e não têm aparecido por lá.

PS. Termino aqui a minha colaboração regular como colunista do Observador. Quero agradecer ao José Manuel Fernandes, ao Miguel Pinheiro (agora), ao David Dinis (antes) e a toda a equipa a forma como sempre fui recebido e tratado. Foi uma honra ter integrado desde o início este projecto inovador, de elevada qualidade e já vencedor em tempos tão desafiantes para a comunicação social. Ainda que colaborando com outros projectos no futuro, nunca deixarei de ser um fã e um “embaixador” do Observador. Os maiores sucessos.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com