Há pouco mais de quatro anos, Mário Centeno, acabado de sair do ministério das Finanças, indicado para o lugar de Governador do Banco de Portugal, afirmava que, tendo em conta a quantidade de matérias em que trabalhou enquanto esteve no Governo, “não conseguia arranjar emprego em Portugal nas próximas décadas”, tendo, com isso, arrumado com a questão que à época se suscitara relativamente à eventual situação de conflito de interesses em que se colocaria na liderança do banco central, indicado pelo próprio Governo de que tinha feito parte até há pouco tempo.

Não ocorreu a Centeno dar aulas, o que fazia antes de ser ministro. Não lhe ocorreu também colocar-se nessa horrenda posição que é enviar currículos, oferecendo-se para trabalhar no sector privado, em empresas, como fez, por exemplo, Medina Carreira, que trabalhou em várias e montou mesmo um escritório de advocacia próprio. Menos lhe terá ocorrido candidatar-se a um concurso internacional, prestando provas, fazendo entrevistas e submetendo-se ao julgamento profissional dos outros, como fez Álvaro Santos Pereira, o ex-ministro mais mal amado pelo situacionismo lambe-botas da pátria. Centeno era, afinal, um desgraçado sem direito a viver. Ou era a cadeira de Governador do Banco de Portugal ou a indigência, a sopa dos pobres, a mitra de Lisboa.

António Araújo recordou, no blogue Malomil, as Memórias de um Chefe de Gabinete, entre outros elementos históricos, abordando um sistema de cunha que antecede a República e que perdurou com a ditadura do Estado Novo, descrevendo Salazar como alguém que “soube, como poucos, gerir o sistema da cunha e da distribuição de lugares”, um mecanismo muito mais favorecedor da longevidade do regime do que a repressão e a violência (que existiu, de facto, mas foi exercida sobre uma minoria politizada que convivia ao lado de uma maioria imensa e apolítica que subsistia pacificamente com o sistema de distribuição de pequenas prebendas, profissões, lugares na administração, favores e benesses).

Há tempos, em conversa escrita, um amigo dizia-me que a cunha, mais do que a corrupção propriamente dita, era o que realmente impedia Portugal de se tornar uma economia decente no quadro da Europa ocidental. Dizia-me: “Porque a cunha é muito mais generalizada do que a corrupção pura e dura. Impede os inteligentes e competentes de progredirem com o seu esforço, garante que são os burros e os incompetentes com família e amigos que são designados para os cargos de direcção. Porque, ao nomear os burros e incompetentes para os cargos de direcção se garante que se estraga o esforço dos bons trabalhadores, tornando-o inútil porque há sempre um pacóvio deslumbrado com o seu poder na hierarquia que disfarça com arrogância e prepotência a sua ignorância. E com isso garante a ineficácia e a o desperdício de recursos e faz com que as organizações, públicas e privadas, não consigam prosseguir os seus objectivos. Consegue-se prosperar com corrupção, como Espanha e Itália. Não se consegue prosperar com um cancro como a cunha, cheia de metástases por todo o lado.”

Terá razão, em parte. Discordarei, talvez, na medida em que a cunha se tornou, para quem vive mais afastado das esferas do poder, algo de mais complicado acesso, ao contrário do que sucedia há algumas décadas – em que a cunha, como o sol, nascia para todos. Esse será, mesmo, uma das grandes frustrações dos portugueses da fase histórica que vivemos: o facto de a cunha se ter tornado algo de acesso mais elitizado, circunscrito à esfera dos partidos e de círculos mais ou menos conhecidos. Ao contrário do que sucedia nos anos 60 do século passado, por exemplo, é hoje mais difícil a um imbecil chegar à administração pública através de um padrinho, um tio, um primo, sem se envolver partidariamente.

Tudo isto me veio à memória quando, entre banhos e as notícias da silly season, reparei que por aí se badala novamente o nome de Mário Centeno para uma candidatura à presidência da República. Não pelo Centeno propriamente dito, naturalmente (em Portugal, há também uma ideia estapafúrdia de tomar todos os assuntos melindrosos como ataques pessoais a indivíduos concretos; não é aí que quero chegar). O ponto é que, sobretudo depois de dez anos de Marcelo, cujos mandatos me escuso agora de aqui descrever, até para não nausear o leitor de veraneio, o país não precisa de outro presidente que o país não precisa de outro presidente que encarne tão perfeitamente um situacionismo de séculos, inter-regimes e duradouro. O país precisa, por uma vez, de um Presidente da República que, não pretendendo substituir o regime, não provenha do situação e que ambicione colocar a sociedade portuguesa num patamar mais elevado de civilização. A melhor coisa que nos podia acontecer era que a próxima pessoa a ocupar o palácio de Belém fosse alguém que o país desconhece, que não ocupe cargos, que não seja sequer conhecido das redacções lisboetas ou, no mínimo, que seja por estas pouco apreciado, que não tenha outra ambição que não seja a de servir, que não veja na mais alta função do Estado um fim ou um trampolim pessoal, como elevador social ou como a jóia da coroa de uma carreira profissional. Boas férias.

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