1 O mito das cinco idades
De modo curioso, Frederico Lourenço começa a sua Ilíada de Homero adaptada para jovens com as palavras, não de Homero, mas de Hesíodo, que, em Trabalhos e Dias, consagra o mito das cinco idades:
“No começo do tempo, de ouro era a raça dos homens na terra. Eram como deuses, viviam sem desgraças, não sabiam o que era o sofrimento. Não envelheciam e, se um dia morriam, a morte não era mais que um suave adormecer. A primavera durava centenas de anos e a terra oferecia frutos abundantes; não era preciso trabalhá-la. A vida tinha o brilho da felicidade permanente e a morte era, também ela, feliz. Mas o tempo, a que tudo está sujeito, determinou que depois desta raça viesse a raça de prata.”
Retomado por diferentes autores nos séculos seguintes, desde Platão a Ovídio, o mito das idades permite-nos compreender o modo como os antigos percecionavam o tempo. Uma vez que, na sucessão das cinco idades, cada período é pior do que o anterior e não é possível recuperar a felicidade da época de ouro, os antigos tinham sempre como referência o passado. O passado que foi melhor do que o presente e que será melhor do que o futuro.
Há um certo sentido de humildade, em harmonia com uma sociedade que considerava a húbris o pior dos males, nesta reverência do passado. Afinal, as circunstâncias tendem a repetir-se e, por isso, devemos olhar para o passado à procura de lições. É neste sentido que se diz que os antigos têm uma noção circular do tempo, simbolizada pela imagem da serpente que engole a sua própria cauda, e que se encontra também nas palavras do Eclesiastes:
“O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: de modo que nada há novo debaixo do sol.” (1:9)
2 O mito do progresso
Este modo de pensar antigo será rompido com o cristianismo, quando o tempo se torna linear e a salvação se encontra à nossa frente, com o final dos tempos em perspetiva. É uma nova noção do tempo que enformará a modernidade e será particularmente refletida no pensamento das luzes e característica fundamental do período contemporâneo.
Não deixa de ser curioso que esta influência seja quase sempre esquecida por aqueles que fazem a apologia da secularidade e do progressismo humanista, como chama a atenção John Gray em Sobre humanos e outros animais:
“O humanismo representa a transformação da doutrina cristã da salvação num projeto de emancipação humana universal. A ideia de progresso é uma versão secular da crença cristã na Providência.”
No novo mito do progresso, a tríade Razão–Ciência–Cientistas substitui a tríade Deus–Igreja–Padres, com o crescente conhecimento científico a garantir, finalmente, o controlo da natureza pelo homem. Era a promessa de Francis Bacon, o filósofo, e das revoluções científicas e tecnológicas dos séculos seguintes.
Há um certo sentido de arrogância nesta fé na ciência como ferramenta para a salvação humana, que se concretizaria com a emancipação da natureza, o domínio sobre a incerteza e a possibilidade de agir sobre o mundo. E com ela nasce um modo específico de viver: enquanto os antigos entendiam a vida boa como uma vida contemplativa, a modernidade impele-nos à ação. Afinal, se o tempo consiste numa linha contínua que nos conduz a uma vida melhor, não podemos parar. Há sempre um passo a dar, há sempre uma conquista a fazer, há sempre um aspeto do mundo a corrigir.
Hans Rosling e Steven Pinker são vozes audíveis na defesa da objetividade do progresso: em vários parâmetros, que se manifestam em estatísticas e comparações, as sociedades atuais são objetivamente melhores do que as do passado. Já para John Gray, que reconhece que é possível falar em progresso no conhecimento, a verdadeira questão é a de saber se existe progresso moral. Somos moralmente melhores do que os homens que nos antecederam? E o conhecimento e a ciência tornam-nos moralmente melhores?
No seu Discurso sobre as ciências e as artes, Jean-Jacques Rousseau radicaliza o seu argumento ao estabelecer uma relação de causalidade direta e negativa entre conhecimento e moralidade:
“Os males causados pela nossa vã curiosidade são tão antigos quanto o mundo. O avanço e o recuo diário das águas do oceano não têm estado mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina durante a noite do que o destino dos costumes e da probidade ao progresso das ciências e das artes. Assistiu-se ao desaparecimento da virtude à medida que a sua luz se elevava no nosso horizonte, e o mesmo fenómeno foi observado em todos os tempos e em todos os lugares.”
Já Gray recorda como os regimes mais violentos do século XX resultaram precisamente da crença no progresso e na ciência: “À medida que a ciência e a tecnologia avançavam, o mesmo se verificava quanto à eficácia do extermínio. À medida que aumentava a esperança num mundo melhor, aumentava também o assassínio em massa.”
No domínio da moralidade parece valer o princípio da contingência, serpenteando ao longo da história. E como a moralidade foi uma importante ferramenta adaptativa, torna-se mais relevante em momentos de incerteza e ameaça da comunidade. Em situações de crise (económica, identitária, cultural), as disputas morais reacendem-se com mais vigor.
3 Ainda
Embora se use habitualmente a expressão “lutas ou guerras culturais” para designar o presente momento de polarização política e social, as disputas atuais são, em bom rigor, disputas morais, isto é, em torno do certo e do errado, em torno dos valores que devem orientar o nosso comportamento. Encontramos, de um lado, uma linha progressista que tenta avançar constantemente alterações às regras morais da comunidade e que gera, do outro lado, uma reação conservadora de igual ímpeto.
O perigo deste contexto de disputa moral é claro: como estamos no domínio do certo e do errado, estas “lutas morais” são entendidas como disputas essenciais, quase de vida e de morte, em que o outro surge como inimigo que deve ser eliminado e não como alguém com quem podemos conversar apesar das nossas discordâncias. O outro torna-se o inimigo a abater e o diálogo revela-se impossível.
Por essa razão, o tradicional binómio “esquerda/direita” parece ter perdido a capacidade de compreender e descrever uma parte significativa dos posicionamentos políticos atuais, enquanto o binómio conservador/progressista surge como mais útil para captar o sentido destas lutas morais: entre aqueles que sentem que a pressão progressista já foi demasiado longe e aqueles que consideram que é preciso dar um passo mais. A recente publicação do livro Reflexões Sobre a Liberdade: Identidades e Famílias é disso um bom exemplo, demonstrando como pessoas de esquerda e de direita conseguem conversar sobre assuntos morais, enquanto o diálogo com o lado conservador parece não ser possível.
Mas se é verdade que o passado não foi uma idade de ouro e regressar às cavernas seria pouco desejável, o mito do progresso que marca o nosso espaço público é igualmente despropositado. Não só ideia de que a história humana consiste numa sucessão de etapas, pelo que a nossa missão na vida deve ser avançar mais uma agenda, mais uma liberdade, mais uma conquista, é ilusória, como também a insistência progressista se revela destrutiva do tecido social e fomentadora de divisões crescentes.
Mais do que isso: a obsessão progressista que prevalece nas nossas sociedades revela a sua tendência antidemocrática ao recusar constantemente a possibilidade do desacordo moral. É o que acontece quando os seus argumentos recorrem à formulação “ainda” para se referirem aos que “ainda acreditam em X” ou “ainda não perceberam Y” – pelo que lhes cabe iluminar as mentes não esclarecidas. Na verdade, a sua revolta contra os que “ainda não pensam como eles” assenta numa falácia.