1 The right to be alone

Um texto fundamental para compreender a consolidação dos regimes democráticos liberais é a conferência proferida por Benjamin Constant em 1819: intitulada A liberdade dos modernos comparada com a dos antigos, foi publicada entre nós pela BookBuilders com uma excelente introdução de António Araújo (falei com Pedro Almeida Jorge sobre este texto no podcast Clássicos da Liberdade).

Naquela conferência, Benjamin Constant pretendeu fazer a defesa do regime representativo face à vontade expressa por alguns, na altura, de recuperar o sistema político dos antigos (de participação política e daquilo que viríamos a designar como democracia direta). De acordo com Constant, essa recuperação era uma impossibilidade: como as circunstâncias históricas se tinham alterado, os modernos apresentavam um entendimento distinto de liberdade e já não estariam interessados num regime político semelhante ao dos antigos.

Para os antigos, ser livre significava participar no governo da cidade, e parte do orgulho grego passava por, ao contrário dos bárbaros, não se curvarem perante um senhor. Eram livres porque sentiam (de diferentes maneiras em diferentes momentos) que determinavam as leis da cidade. Já os modernos entendem por liberdade o gozo da vida privada: ser livre não é participar politicamente, mas ter um espaço de liberdade privada onde o poder político não interfere (como Araújo chama a atenção, é o princípio que a tradição inglesa traduz como the right to be alone, o direito de ser deixado em paz).

Essa alteração do entendimento de liberdade aconteceu em resultado de três acontecimentos históricos, que podemos identificar a partir de três palavras-chave: paz, tempo e comércio. Que acontecimentos foram esses? Em primeiro lugar, o nascimento do estado moderno, que cria condições de paz que não existiam quando as comunidades se organizavam politicamente em cidades pequenas e estavam, por essa razão, sempre sob ameaça. O facto de a sua independência ter de ser permanentemente assegurada levava a que as cidades antigas tivessem um caráter essencialmente militar e era essa condição de defensores da cidade que estabelecia um elo indissolúvel entre deveres e direitos políticos. O tamanho dos estados modernos libertou-nos dessa condição de disposição permanente.

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O segundo acontecimento prende-se com o facto de as sociedades modernas terem gradualmente prescindido da instituição da escravatura, que não constitui um traço fundamental da sua organização social. Este aspeto eliminava o tempo de ócio que permitira uma dedicação permanente ao governo da cidade: como é habitualmente notado, passou-se de uma sociedade de ócio para uma sociedade de negócio – sendo este precisamente o terceiro fator apontado por Constant. As sociedades modernas assentam em dinâmicas económicas e de troca comercial, na dupla relação que os liberais sempre apontaram ao comércio: a paz permite o comércio, mas o comércio também cria condições mais propícias para a paz na medida em que estimula relações de cooperação, e não de agressão, entre os estados.

Esta dimensão profissional, que nos remete para a vida privada, é hoje um dado adquirido, mas não deve negligenciado: corresponde à vida burguesa, ao cidadão envolvido nos seus negócios, que lhe permitem a satisfação dos prazeres privados; é a vida quotidiana, que nos mantém higienicamente afastados da vida política. E em bom rigor, como Mário Cesariny notou, burgueses somos nós todos.

É precisamente a isto que Constant pretende referir com a sua liberdade dos modernos: é o gozo da vida privada, que se mantém afastada da lógica política e da intervenção do estado, e leva à constituição de um dos pilares fundamentais do liberalismo ao consagrar a separação entre a esfera pública e a esfera privada. Aquela remeteria para a dimensão política da vida do cidadão e estaria sujeita a princípios de caráter político; a última remeteria para a nossa privacidade, e estaria sujeita às regras determinadas pela livre consciência individual. É este aspeto fundamental da modernidade que está hoje posto em causa.

2 The personal is political

A conferência de Constant é também fundamental para uma área específica de estudo – as teorias da democracia –, por permitir contrapor com clareza as duas principais teorias democráticas: por um lado, a teoria da democracia representativa, de acordo com os princípios supra; por outro, a teoria da democracia participativa, que se inspira no sentido de liberdade dos antigos e, em larga medida, em Jean-Jacques Rousseau, contra quem, com muito respeito, Constant escreve.

O paradigma representativo foi sendo amadurecido nas sociedades ocidentais desde as revoluções liberais e foi o paradigma dominante até ao início da Guerra Fria. Serão as décadas de 1960 e 70 a marcarem o nascimento das teorias da democracia participativa, no contexto dos movimentos de contestação política daqueles anos. A ideia passava por defender o afastamento do paradigma liberal, que era naturalmente opressivo com os seus conceitos de representação, liberdades burguesas, gozo da vida privada. Era urgente (a palavra mágica dos nossos tempos) uma revolução política que se aplicasse a todas as áreas da sociedade e democratizasse todos os domínios, desde universidades e escolas até empresas e famílias. Na formulação dos movimentos feministas da altura, importava defender que “o pessoal é político”, pelo que uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária deve politizar todas as esferas da vida. (Apesar da evidente proximidade teórica, este paradigma democrático não se confunde com a proposta marxista.)

Como quase sempre acontece na reflexão política, aquele lema partia de uma reivindicação de justiça: a convicção de que a posição social da mulher continuava desvalorizada, nomeadamente no domínio profissional e no casamento, pelo que se exigia uma democratização desses domínios. Mas esse ímpeto de justiça deve ser avaliado com justeza: quais são as consequências de querermos sujeitar todas as esferas da vida a uma lógica política?

A primeira consequência é a de passarmos a interpretar todos os acontecimentos de acordo com o padrão que usamos para o universo político: tudo passa a ser luta por poder, exigindo que descortinemos quais as relações de poder em causa em todas as dimensões da vida, e isto independentemente da sua diversidade ontológica (como diz Paulo Tunhas) ou do seu propósito. É por esta razão que os defensores da lógica da politização entendem que se deve olhar para a investigação científica, a prática médica, a educação, o jornalismo, o desporto, a religião a partir desta lente (debruçar-me-ei sobre estes tópicos nos próximos textos). O objetivo destas áreas não seria chegar aos factos, à verdade, ao conhecimento, à fé ou ao “melhor resultado” – mas antes gerar justiça social. Ao invés de ser, como diz Tunhas, “a natureza – a ontologia – dos objetos estudados [a] determinar a maneira como pensamos sobre eles”, é o que pensamos sobre eles que deve condicionar a sua natureza.

A segunda consequência da politização de tudo consiste na supressão da esfera privada: quando adotamos o princípio de que tudo é política, todas as dimensões da nossa vida passam a estar sujeitas a princípios políticos. Não espanta, por isso, que em Espanha se tenha proposto a regulação da arquitetura das casas por forma a que se tornem mais feministas. Que fique claro: que as pessoas queiram, por sua iniciativa, construir casas com uma arquitetura mais feminista (seja lá o que isso for) é totalmente legítimo – mas do que estamos a falar é de uma proposta para que o estado regule todas as casas nesse sentido. O mesmo vale para a forma como queremos educar os nossos filhos, praticar a nossa fé ou gozar o nosso tempo livre: quando politizamos tudo, deixamos de ter esfera privada e somos continuamente corpos políticos e sujeitos a regras políticas. Devemos, por isso, ter cuidado com o fetichismo da palavra “democracia”.

Por fim, e em última instância, um mundo em que tudo é politizado é um mundo não só sem liberdade de expressão como também sem liberdade de pensamento: não podemos dizer coisas (politicamente) erradas, como não podemos pensar coisas (politicamente) erradas. Urge instituir uma educação política, urge estabelecer regras de expressão obrigatórias e, em último recurso, urge criar centros de reeducação para os incumpridores. No seu texto, Constant recorda como o Abade de Mably (defensor das ideias rousseaunianas) lamentava o “facto de a lei só poder alcançar as ações. Queria que a lei atingisse os pensamentos, as impressões mais fugazes, que perseguisse o homem sem trégua e sem lhe deixar um refúgio onde pudesse escapar ao seu poder”. Se isto faz lembrar os regimes totalitários, não é pura coincidência.